A zona ribeirinha de Lisboa e a fantasiada convivência da cidade com o Tejo voltaram a discutir-se na Assembleia Municipal. Quem manda nesse território, com áreas sob tutela da Administração do Porto de Lisboa (APL), e outras submetidas à Câmara Municipal, tem a ver com a actividade portuária, sobretudo, de mercadorias. Ao contrário do que se pensa, não existe um porto de Lisboa; existe uma Administração e vários terminais de carga, dispersos por toda a bacia, que abrangem onze municípios do estuário do Tejo. Até há uns anos, a APL mandava em toda a faixa ribeirinha (salvo erro, até 50 metros da linha de costa). A pouco e pouco, a actividade portuária pesada, dos guindastes, estivadores, contentores, e mercadorias volumosas, foi-se afastando do centro da cidade. Não acabou, mas está hoje reduzida a uma pequena parte. Também a pouco e pouco, a tutela sobre essas zonas foi passando da APL para a Câmara Municipal. Mas o processo não está terminado. Enquanto dura a desordem e a indefinição, pagam-se verbas à APL por contratos de arrendamento que possivelmente nem terão de existir. Na semana passada, a Iniciativa Liberal, que por regra costuma estar atenta a gastos perdulários, apresentou uma recomendação para acelerar o processo. Um bom documento, de resto largamente aprovado. Chamou-lhe “Devolver o Tejo às pessoas”. Vou concentrar-me nesta expressão, que não é boa nem corresponde à verdade.

Não é por ser governada pela Câmara, nem por ter menos actividade portuária, que uma parte de Lisboa se relaciona mais ou menos com o rio, ou que o Tejo pertence mais ou menos “às pessoas” (quais pessoas?). De certa maneira, as coisas até sucedem ao contrário do que a expressão sugere. Quando havia mais actividade portuária, talvez houvesse mais pessoas a relacionar-se diariamente com o Tejo (considerando que os trabalhadores dos portos são “pessoas”, um postulado que tenho como bom mas não quero impor). Estas pessoas trabalhavam ali, numa actividade comercial importantíssima, com interesse e consequências determinantes na vida da cidade. Tão determinantes que, é bom lembrar, foi a situação geográfica, com a correspondente localização do porto, que deu origem à cidade de Lisboa, ao seu desenvolvimento, ao desenho acumulado do seu urbanismo, a partes fundamentais da história de Portugal e dos seus regimes políticos, e à própria posição que o país tem hoje no mundo. Nada disto se fez com esplanadas, e muito menos com celebrações “artísticas” de altíssima irrelevância. É obviamente um erro considerar que uma actividade comercial ou portuária vai contra os interesses das pessoas, e que só as actividades de lazer permitem às ditas pessoas relacionar-se com o rio.

Mas existe uma dificuldade, e só assim se explica a insistência de três ou quatro décadas no mesmo cliché que imagina “devolver o Tejo às pessoas”. Na cabeça epigonal de quem pretende ter aqui “tão bom quanto o melhor” que se faz “lá fora”, não entra esta simples constatação: o que separa o Tejo das pessoas é a dimensão do estuário. O Porto tem o rio Douro, que é facilmente atravessável; como o Sena em Paris, o Thames em Londres e Oxford, ou o Danúbio nas cidades por onde vai correndo. A largura do estuário do Tejo é difícil de se relacionar com a escala humana. Precisamos de um carro, um barco, ou um comboio; não se atravessa a pé. Esse é o maior obstáculo à relação directa dos cidadãos de Lisboa com os da outra margem do Tejo, ou de um território com os dos outros municípios, ou de todos eles com o próprio rio. E quanto a isso não há muito a fazer, seja no plano político, jurídico, ou administrativo. Sobra ao estuário, que por boas razões até se chama Mar da Palha, uma função meramente contemplativa – para quem tenha a sorte de morar na colina certa.

Aos olhos de quem quer ver as coisas com atenção, a ideia de “devolver o Tejo às pessoas” não lhe basta ser obcecada; parece também um cliché mentiroso. Desvaloriza as actividades comerciais e portuárias que determinaram a existência da grande Lisboa. Supõe que o recreio é a única maneira das pessoas se aproximarem do rio. Substitui guindastes por hotéis e restaurantes, paródias e pistas de bicicleta. No fundo, pretende uma forma de gentrificação bem pensante, no sentido mais paroquial da palavra.

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