O homicídio cometido, na Bélgica, por um migrante de nacionalidade tunisina que se encontrava em Bruxelas em situação irregular fez direcionar os holofotes para as políticas de segurança interna e de controlo dos migrantes irregulares na Europa.
Abdesalem L., de 45 anos, residia em Schaerbeek. Em 2019 requereu asilo mas o pedido foi recusado em menos de um ano, permanecendo em situação irregular na Bélgica. Era conhecido das autoridades belgas por “tráfico de seres humanos, residência irregular e atentado à segurança do Estado”, indicou o ministro da Justiça, Vincent Van Quickenborne.
Em 2015, Abdesalem L. havia permanecido em território português, tendo sido detido pelas autoridades policiais e presente a Tribunal por se encontrar irregular. Na altura, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) tomou a decisão de detenção e expulsão do território nacional, mas o juiz da comarca de Pinhel, na Guarda, decretou-lhe a medida de coação de Termo de Identidade e Residência (TIR) e apresentações semanais, decisão que deu tempo a Abdesalem L. para escapar do controlo judicial. Quando foi detetado em Portugal, os inspetores do SEF perceberam que migrante tinha uma ordem de proibição de entrada na Suécia, emitida em fevereiro de 2013 e válida até janeiro de 2016. Não sabemos mais da história de Abdesalem L. qual foi o ano em que saiu da Tunísia, quando entrou na Europa, quantas vezes pediu asilo, quantas lhe foi negado e há quanto tempo vivia à deriva em território europeu.
Sabemos que os movimentos secundários de migrantes que têm o seu pedido de asilo rejeitado ou que entraram na Europa clandestinamente sem hipóteses de se regularizar são uma realidade que os governos, na generalidade, não querem colocar nas suas agendas políticas como uma prioridade. Os Estados-membros europeus ainda menos sabem quantos migrantes irregulares estão nos seus territórios, ou seja, não fazem qualquer ideia da dimensão do problema.
O que sabemos então? Sabemos que:
- No ano de 2023, até setembro, já tinham entrado irregularmente na Europa 194 269 migrantes.
- Em 2022, segundo o Eurostat, 1,08 milhões de pessoas foram detetadas em situação ilegal na UE, mais 59% do que no ano anterior.
- No ano de 2022 foram apresentados 956 665 pedidos de asilo, o número inclui tanto os pedidos de asilo apresentados pela primeira vez como os pedidos subsequentes, um crescimento de 31% face ao ano de 2019 (ano pré-pandémico). A taxa de rejeição de pedidos de asilo na Europa quase dobrou em três anos, passando de 37% em 2016 para 64% em 2019. Em 2022 a taxa de rejeição foi de 51%, para as decisões de primeira instância.
- No final de 2022, quase 899 mil pedidos de asilo aguardavam uma decisão nos países da UE, um aumento de quase um quinto em comparação com o ano anterior.
O sistema europeu de asilo tornou-se um jogo de vida ou morte pela localização geográfica de cada Estado-membro: a capacidade financeira do migrante para pagar ao traficante, a sua aptidão física e mental e a sorte na perigosa rota terrestre e marítima determinam quem pode chegar à fronteira, pedir asilo e imigrar. Isto, naturalmente, sem garantias de regularização após esta jornada. Este sistema falha logo pela seleção inicial de quem consegue pedir asilo e de quem é deixado para trás, nem sempre quem chega necessita de asilo, muitas vezes quem não consegue entrar carece de proteção internacional.
A atual Lei de Asilo e o regulamento de Dublin dificultam a integração, ameaçam a segurança interna, fortalecem movimentos secundários de migrantes irregulares e criam espaço para movimentos populistas que dividem a Europa.
Em abril de 2023, o Parlamento Europeu aprovou a sua posição sobre as revisões de procedimentos das fronteiras externas para a gestão dos migrantes irregulares. As alterações visaram abordar melhor as complexidades e os desafios da gestão da migração, garantindo simultaneamente que os direitos e as necessidades dos migrantes irregulares sejam respeitados e protegidos. Mas, paralelamente, sugere o Parlamento Europeu que o procedimento de asilo seja mais rápido e simplificado (seja lá o que for que isto significa).
Para além disto convém não esquecer que esta natureza de tramitação jurídica é “vítima” da lentidão da tomada de decisão judicial sobre este processos. Em caso de rejeição ou de indeferimento de um pedido de asilo, a proposta do Parlamento Europeu é a de devolver (retorno ao país de origem) o migrante no prazo de 12 semanas. Isto se as Autoridades souberem onde se encontra cada um desses migrantes com indeferimento e decisão de saída em 12 semanas. Naturalmente não podemos esperar que, durante 12 semanas de total liberdade e sem qualquer contacto com as autoridades, o migrante se apresente voluntariamente para ser deportado. Isto embora seja importante relembrar um princípio fundamental do direito internacional em matéria de refugiados e direitos humanos: a proibição de os Estados repatriarem migrantes irregulares para um país onde existe um risco real de serem sujeitos a perseguição, tortura, tratos desumanos ou degradantes ou qualquer violação dos direitos humanos. Sabemos bem, que nos países de origem destes migrantes rejeitados (maioritariamente de África e de zonas da Ásia) vivem-se situações de extrema privação, conflitos políticos e governações muitas vezes ditatoriais.
Neste pequeno parágrafo anterior é evidente o contrassenso de todas estas posições europeias e como elas entram em contradição, condicionando a atuação dos países. Ora veja-se: decide-se deportar, mas não se realiza a detenção do migrante; acresce ainda que essa decisão de deportar pode ser para um país de origem não seguro, ora não se pode assim deportar; estabelece-se tomar medidas para proteger o migrante irregular, mas na globalidade cessam-se os apoios de proteção social se for negado o asilo ou outro meio de regularização.
Verificámos ainda, que após o atentando em Bruxelas, a Comissão Europeia prontificou-se a discutir se há pessoas que têm de abandonar a União pelo “potencial risco” que representam para os Estados-membros. Veremos como irá a Comissão Europeia encontrar a métrica para avaliar quem são os migrantes irregulares com “potencial risco” e depois se sabe a Europa onde encontrá-los.
Oportuno seria também discutir o que fazer a todas as pessoas migrantes que ficam em situação de irregularidade e são, na generalidade, colocadas numa zona de limbo, em que “não te legalizamos, não te apoiamos, não deportamos, mas deixamos-te entregue a ti próprio”. Perverso, dirão uns, irresponsável, dirão outros tantos. Os fluxos migratórios crescentes e o número de migrantes que entram na Europa, mas que não são regularizados são uma realidade incómoda que muitos governos pura e simplesmente omitem para não serem obrigados a tomar posição e atuarem em conformidade.
Assistimos a uma tendência crescente de cada país europeu per si tomar medidas avulsas para proteger as suas fronteiras internas. Recentemente a Itália suspendeu a livre circulação no espaço Schengen. Apesar das várias tentativas para a resolução do problema, aquilo a que assistimos é à transferência pelas autoridades policiais dos migrantes irregulares dentro do espaço europeu, isto é, os migrantes vão sendo devolvidos ao país de entrada. A Itália já fez saber que não recebe mais retomas a cargo. Assim, todos os migrantes irregulares identificados noutros países europeus não serão acolhidos por Itália.
Nós por cá, em Portugal, abrimos as portas à entrada de migrantes facilitando os meios irregulares de entrada, com a perspetiva de acesso subsequente à regularização, o que nem sempre é alcançável, ficando os migrantes em condições favoráveis a serem vítimas de redes de exploração e de condições degradantes, muitos a viver em situação de sem-abrigo. Foi ainda pelo governo tomada a decisão de extinguir o SEF, criando um megaestrutura (Agência Portuguesa para as Minorias, Migrações e Asilo) que irá fundir as políticas de integração de migrantes com políticas de controlo e fiscalização dos fluxos migratórios. Importa que a concretização, na prática, das medidas decorrentes da decisão judicial tenha condições de aplicabilidade e que aquelas sejam executadas com celeridade. Quanto às condições de aplicabilidade é imperioso que esta Agência seja dotada dos meios para acolher e isolar temporariamente os migrantes cujo processo foi indeferido até à data do seu repatriamento; quanto à celeridade creio que não se justifica um prazo de 12 semanas para a execução da decisão judicial, tanto mais que quanto menor for esse prazo menores serão as condições de que a Agência terá de ser dotada para acolher tais imigrantes.
À guisa de conclusão devo afirmar o seguinte: remeter estes migrantes irregulares para uma situação de invisibilidade não é, certamente, uma solução ética para tais migrantes nem uma solução eficaz para as sociedades que os acolheram temporariamente e que, entretanto, decidiram pela sua não regularização. O mais certo é que muitas das práticas que estes migrantes irregulares vierem a ter para sobreviver, no caso de continuarem a ser tornados invisíveis, sejam de natureza ilícita e/ou potencialmente perigosa para a sociedade, enquanto outros migrantes ficam, certamente, em situação de sem-abrigo e serão alvos fáceis do mercado negro de emprego e de tráfico humano.
A Europa precisa de estabelecer consensos na gestão dos fluxos migratórios, um problema que afeta todos os países direta ou indiretamente, de alcançar unanimidades das quais depende a sustentabilidade do futuro da coesão europeia. Não se limitando a criar um exagero de legislação, tratados, normas e diretivas de quase nula aplicabilidade e eficácia.