No debate em torno dos contratos de associação, têm-se misturado questões que, sem prejuízo de articulações entre elas, são autónomas:
a) por um lado, a discussão sobre o lugar no sistema educativo do ensino particular e cooperativo em geral e com contrato de associação em particular, sem perder de vista as exigências de sustentabilidade (um conceito não meramente económico-financeiro, já que tem relevância também, por exemplo, no plano da sustentabilidade territorial) e de racionalização, sempre importantes no que toca à gestão de dinheiros públicos, mas especialmente na já chamada “idade da austeridade”. Tendo presente a arte da compatibilização entre diferentes valores constitucionais e a pluralidade de leituras da lei fundamental, a questão passa por saber se, em 2018, deveremos manter todos os contratos de associação;
b) por outro, averiguar o alcance dos contratos de associação celebrados em 2015 e, caso se conclua que compreendem a abertura de novos ciclos em cada um dos três anos, honrá-los, de acordo com o que decorre da Resolução n.º 26/2016, de 9 de fevereiro, aprovada na Assembleia da República (“[s]em prejuízo dos compromissos contratuais assumidos pelo Estado e da necessária preservação da estabilidade das escolas”).
Ou seja, a defesa de cortes significativos em sede de contratos de associação a partir de 2018 não contraria a exigência, até lá, do cumprimento integral dos contratos assinados.
Não é meu propósito aprofundar aqui as questões jurídicas envolvidas, o que fiz longamente noutra sede (textos disponíveis na nossa página pessoal), acompanhado da declaração de interesses que as exigências de honestidade intelectual requerem, dado que a situação não me é familiarmente indiferente. Em termos de direito, estou habituado às controvérsias interpretativas, tomando a sério palavras de Karl Popper:
“(…) talvez tu tenhas razão e talvez eu não tenha; e se, pela nossa discussão crítica, não decidirmos definitivamente qual de nós tem razão, podermos esperar, na sequência dessa discussão, ver as coisas um pouco mais nitidamente do que antes” (Em busca de um mundo melhor, Lisboa, 1988, 186).
Pretendo apenas sublinhar dois aspetos que entendo serem inadmissíveis: um, no plano da democracia, que exige a observância de um princípio de verdade, que o Ministério não honrou perante os cidadãos da República; o segundo, num estrito plano jurídico, que chama a atenção para o facto de o Aviso do concurso datado de 20 de maio ter sido aberto a “título excecional”.
1. A reescrita da história ou como transformar uma posição vencida na pretensamente vencedora
Há fronteiras que não devem ser ultrapassadas, há condutas que são intoleráveis, ainda mais quando provêm de um Ministério. Com efeito, lê-se no sítio do Ministério da Educação, num texto intitulado “Procuradoria-Geral da República dá razão ao Governo sobre contratos de associação”, de 27 de maio de 2016:
“(…) o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo deve ser aplicado em conformidade com o disposto na Constituição e na Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo (Lei n.º 9/97), designadamente o seu artigo 8.º, que determina que a celebração destes contratos só pode ter lugar quando os estabelecimentos privados de ensino «(…) se localizem em áreas carenciadas de rede pública escolar».
No Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) encontramos o seguinte:
“(…) o Estatuto tem de ser interpretado nesta matéria em conformidade com o estabelecido na Lei de Bases e, naturalmente, com o consagrado na Constituição. Assim, em suma, entendo que tal significa que o Estado só pode celebrar contratos de associação com escolas particulares ou cooperativas que se localizem em áreas carenciadas de estabelecimentos públicos de ensino”.
Simplesmente, trata-se de um extrato do voto de vencida da Conselheira Maria Manuela Flores Ferreira. Com efeito, a opinião maioritária do Conselho Consultivo da PGR vai exatamente no sentido oposto, como resulta claramente do documento:
“(…) nem o Decreto-Lei n.º 152/2013, nem a Portaria n.º 172-A/2015, ostentam incompatibilidade com a Lei n.º 9/79, devendo ser aplicados em conformidade com o nela estabelecido e tendo especialmente em consideração o disposto nos seus artigos 6.º e 8.º” (8.ª Conclusão).
Ou seja, em relação à questão de saber se o novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo – ao abrigo do qual se abriu o procedimento concursal de 2015 – configura uma violação da Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo (Lei n.º 9/79, de 19 de março), ao afastar o critério da carência anteriormente consagrado, o Conselho Consultivo da PGR respondeu não.
Acrescente-se já agora que o referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República desmente – embora aqui apenas em parte – a tese, defendida pelo Governo, de que não estaria contemplada a abertura de novos ciclos nos dois próximos anos, pois reconhece uma exceção para o ano letivo de 2017/2018, no que toca ao 2.º ciclo do ensino básico.
2. Um concurso aberto a “título excecional”
Se a questão anterior já tinha sido aflorada, nomeadamente no Observador, sem que a maioria se tenha apercebido da gravidade da conduta – uma mancha na democracia portuguesa –, já o Aviso de 20 de maio, que aumentou a tempestade discursiva, parece ter passado incólume quanto a um ponto relevantíssimo: o concurso (contemplando apenas parte das escolas que, em 2015, celebraram contratos de associação) ter sido aberto a “título excecional”.
Indo ao ponto: porque recorreria o Ministério a um procedimento concursal excecional se pudesse valer-se de um procedimento normal? Dizendo-o de forma clara: o Ministério abriu um concurso, a título excecional, para “extensão de contratos de associação existentes a um novo ciclo de ensino” (Aviso de 20 de maio), porque o quadro normativo em vigor o impede de lançar mão de um concurso normal. E porquê, concretamente? Porque o art. 3.º/1 da Portaria n.º 172-A/2015, de 5 de junho, tendo presentes ponderosas razões de proteção de confiança, dispõe que os procedimentos normais se desencadeiem, não todos os anos, mas apenas de três em três anos. Tal significa que, datando o último concurso normal para abertura de novos ciclos de 2015, o próximo só deveria ter lugar em 2018. E significa ainda que esse concurso de 2015 contempla já, necessariamente, aberturas de ciclo nos anos letivos de 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018, bem como, por força do quadro jurídico existente, quer as chamadas turmas de continuidade durante o prazo de vigência do contrato (até ao final do ano letivo de 2017/2018) quer até 2020, pois “[n]o final do contrato, os seus efeitos mantêm-se até à conclusão do correspondente ciclo de ensino” (Art. 13.º/2 da Portaria n.º 172-A/2015, de 5 de junho).
Assim, perante a impossibilidade de abrir um procedimento concursal normal, a senhora secretária de Estado Adjunta e da Educação lançou mão de um expediente, procurando socorrer-se do art. 3.º/2 da referida Portaria:
“(…) no decurso do triénio pode ser autorizado, a título excecional, a realização de procedimento administrativo por despacho do membro do Governo responsável pela área da educação”.
Tal excecionalidade visa acautelar situações de interesse público, provocadas por factos que exijam uma intervenção (o afluxo anormal de refugiados, por exemplo), e não ser instrumento normal de contratação. A excecionalidade não pode, pois, significar outra coisa a não ser uma alteração superveniente, inesperada, das circunstâncias, que torne necessário novo procedimento concursal para a realização do bem comum.
3. Em jeito de conclusão
A terminar, seja qual for a perspetiva política quanto à escola estatal e o financiamento, por via de contrato de associação, dos estabelecimentos do ensino particular e cooperativo, interessa sublinhar que a questão jurídica se prende com o (in)cumprimento dos dois próximos anos de contrato.
A mudança do Ministério da Educação, no sentido de seguir um outro caminho no que toca à política educativa quanto aos contratos de associação, deveria antes ter apontado para um estudo de reavaliação da rede que viesse a produzir efeitos mais tarde, nunca antes de 2018, assentando numa atempada comunicação aos interessados, a saber: aos pais, que contavam matricular os seus filhos, nomeadamente nos ciclos de continuidade (por exemplo, do 6.º ano para o 7.º, conceito que não se confunde com a continuidade dentro de cada ciclo), e aos próprios estudantes; aos diretores e titulares dos estabelecimentos de ensino, que têm pesados encargos financeiros assumidos; aos docentes, de forma a conseguirem, em tempo útil, concorrer ou procurarem, em prazo adequado, outras alternativas no mercado, o que permitiria uma desoneração dos orçamentos dos próprios estabelecimentos de ensino, solução válida também para os profissionais não docentes.
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra