Em sociedades abertas e plurais, o confronto de pontos de vista é um elemento de robustecimento da esfera pública, sendo o dissenso normal e salutar. No Estado Constitucional, nem as próprias decisões dos tribunais se subtraem à crítica. Vem isto a propósito do Acórdão n.º 225/2018, que, entre outros pontos, veio considerar inconstitucional o regime de anonimato mitigado consagrado no art. 15.º da Lei n.º 32/2006 (“podem (…) ser obtidas informações sobre a identidade do dador por razões ponderosas reconhecidas por sentença judicial”), alterando a orientação maioritariamente acolhida no Acórdão n.º 101/2009.  No aresto de 2018, o Tribunal Constitucional (TC) afirmou a primazia do direito ao conhecimento da ascendência genética, passando a considerar como regra o conhecimento da identidade do(a) dador(a), que só poderia ser afastada por “razões ponderosas”, posição já sustentada entre nós por Rafael Vale e Reis.

Esta solução não é pacífica, como, aliás, a leitura dos votos de vencido comprova. No entanto, o Parlamento está obrigado a respeitá-la e, em matéria de regime transitório, salvo melhor opinião, não o faz. Na verdade, pôs-se o problema de saber como proceder em relação às dádivas de gâmetas e embriões anteriores à publicação do acórdão do Tribunal Constitucional no Diário da República. Com efeito, em sede de fiscalização abstrata sucessiva, em princípio, a decisão produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (art. 282.º/1 CRP). No n.º 4 do mesmo artigo, admite-se, no entanto, a limitação de efeitos, nomeadamente que a decisão possa ter apenas efeitos prospetivos. Acontece que, no aresto em apreço, o Tribunal efetivamente lançou mão desta faculdade, mas apenas em relação aos procedimentos de maternidade de substituição já iniciados. Neste último caso, decidiu o Tribunal:

“Determinar, ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade das alíneas a), b) e c) não se apliquem aos contratos de gestação de substituição autorizados pelo Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida em execução dos quais já tenham sido iniciados os processos terapêuticos de procriação medicamente assistida a que se refere o artigo 14.º, n.º 4, da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho”.

Ora, não tendo o Tribunal limitado os efeitos no que toca ao anonimato, não pode o legislador, ainda que sob as vestes de disposições transitórias, fazê-lo agora. Aliás, a leitura das Declarações de Voto desfaz quaisquer dúvidas que pudessem existir. Di-lo, de uma forma sintética, o Conselheiro de Fernando Ventura:

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6. Subscrevendo, pelos motivos referidos, a declaração de inconstitucionalidade das normas contidas nos nºs 1 e 4 do artigo 15.º da LPMA, na parte referida na alínea e) da Decisão, entendo também que a autonomia informativa do dador, valor constitucionalmente tutelado (artigo 35.º da Constituição), e razões de segurança jurídica, suportadas na manutenção de condições favoráveis à doação em Portugal, justificavam que se determinasse a restrição dos efeitos de tal declaração, ao abrigo do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, de modo a que seja salvaguardado o sigilo (mitigado) que cobre a identidade de quem efetuou a doação de gâmetas ou embriões até à publicação da decisão. Ou seja, quanto às doações efetuadas em momento anterior, a revelação dos dados identificativos do dador não deixaria de ser possível, mantendo-se, porém, sujeita à demonstração em juízo de razões ponderosas para o efeito.
Dada a eliminação das normas declaradas inconstitucionais operada pela eficácia própria da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral (artigo 282.º, n.º 1, da Constituição), entendo que haverá seguramente dadores que veem agora infirmada a condição de confidencialidade que, frequentemente numa fase inicial da vida adulta e antes da construção de um projeto familiar próprio, elegeram como indispensável à formação da vontade de fornecerem os seus gâmetas ou embriões, condição essa que consideraram preenchida pelo regime legal instituído, com o reforço de segurança conferido pela sujeição do mesmo à sindicância do Tribunal Constitucional”.

É preciso que se tenha presente que, em Portugal, não vigorava um regime de anonimato absoluto, mas antes um sistema de anonimato mitigado. O Acórdão n.º 225/2018 foi objeto de uma importante discussão logo em junho de 2018, estando os textos agora publicados em livro (Colóquio internacional Que futuro para a gestação de substituição em Portugal? 22 junho 2018, Coimbra: Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2018).

Permitimo-nos transcrever parte do que então sustentámos, partindo de uma diferença entre o plano sistémico e o pessoal:

“Na primeira perspetiva, ou seja, em termos globais, é relevante a mudança de um regime de anonimato mitigado para um regime mitigado de proibição do anonimato. Mas, do ponto de vista pessoal e da proteção da confiança, o argumento que acabámos de ler no voto de vencido de Fernando Ventura revela-se débil. Com efeito, no quadro da LPMA, era claro que, para cada dador, na sua situação concreta, o anonimato poderia não funcionar, bastando que houvesse “razões ponderosas” (no plano do fundamento) e uma decisão judicial (no plano de controlo). Mais: na doutrina havia já leituras generosas da mencionada formulação, pelo que, em concreto, o dador podia e devia considerar seriamente que, no seu caso, poderiam verificar-se os pressupostos de levantamento do anonimato, ou seja, uma situação suscetível de ser reconduzida às “razões ponderosas”.

Nem podem argumentar que desconheciam esse risco: do ponto de vista do conhecimento, recorda-se que os formulários de consentimento aprovados pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e que os dadores tiveram de assinar davam conta expressamente dessa possibilidade. Além disso, sendo peças relativamente breves, nem vale aqui a tese de que estaríamos perante uma multiplicidade de cláusulas, não raro em letra minúscula, que tornam difícil a leitura, como acontece, por exemplo, com contratos em diferentes áreas” (p. 99).

Mais: mesmo nos sistemas que passaram de um regime de anonimato absoluto (e já vimos não ser esse o caso português) para modelos baseados no acesso à identidade d(o)(a) dador(a), nem todos ressalvaram as situações anteriores à modificação legislativa. Na Suíça, afirmou-se que prevalecia o direito das pessoas resultantes da dádiva, atendendo também ao facto de não haver aqui qualquer impacto em matéria de filiação. No mundo do common law, veja-se, em nome do princípio da igualdade, a legislação do Estado de Vitória (Assisted Reproductive Treatment Amendment Act 2016, em vigor desde março de 2017), que terminou com a  ressalva existente quanto aos dadores anteriores a 1 de janeiro de 1998. No entanto, consagrou-se um “veto de contacto”, admitindo que os dadores recusem ser contactados e estabelecendo-se sanções para o incumprimento.

Este ponto mereceria disciplina legislativa entre nós, para mais num mundo onde, num quadro de geneticização, existe forte redução do campo do anonimato. Na verdade, o desenvolvimento dos megadados (big data), associados à redução dos custos de testes genómicos, que massificaram a sua realização, tem permitido crescentemente a identificação dos dadores. Importa aprender com o grande banco de esperma Cryos (Dinamarca) que passou a inserir o seguinte aviso em diferentes línguas, entre as quais o português:

“Os doadores são anónimos ou não anónimos. Estas definições não significam que os doadores não são identificáveis. Uma vez que o esperma dos doadores inclui o ADN, há sempre o risco dos doadores, destinatários e crianças poderem ser identificados através da análise de ADN, o que pode pôr em causa a privacidade”.

A advertência corresponde a uma prática recomendada por entidades como a European Society of Human Genetics (ESHG) e a European Society for Human Reproduction and Embryology (ESHRE). Estas criaram um grupo de trabalho conjunto, que alertou para o facto de já não ser mais possível garantir o anonimato, perante uma situação de multiplicação de testes DTC (Direct to consumer) e também de bancos de dados como, por exemplo, o Family Tree DNA. Crescentemente, os debates passam agora por garantir a oposição ao contacto por parte dos dadores e das dadoras ou estabelecer diferentes modalidades (por exemplo, por via de correspondência, evitando que lhes batam à porta). Além disso, face ao efeito limitado do modelo voluntário de informação sobre a intervenção de dador(a), crescem as vozes a favor da necessidade de estabelecer mecanismos que permitam às pessoas saber que resultaram de gâmetas de terceiros.

Também aqui valem as palavras atribuídas (ainda que a imputação seja muito dúbia) a Galileu: Eppur si muove!

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra