Além dos festejos e proclamações, o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, que se comemorou a 18 de abril, deve suscitar-nos uma reflexão sobre o estado do nosso património edificado e a sua presença na sociedade e no território. De facto, esta é uma oportunidade para questionar as políticas públicas e os seus instrumentos, e a forma como estas afetam o papel que o património representa nas nossas vidas.

Monumentos, sítios, mas também territórios em transformação e bairros históricos, o conceito de património edificado tem evoluído e engloba categorias muito diversas. Ocorre-nos pensar de imediato nos monumentos isolados (a Torre de Belém, e por aí), geralmente na posse do Estado. Mas a larga maioria dos bens tem uma natureza mais complexa, abarca conjuntos de edifícios e espaços, sujeitos a muitas tensões e na posse de múltiplos agentes, que constituem o quadro de vida de comunidades. Apenas para ilustrar a ideia, pensemos na Baixa Pombalina ou em centros históricos como Évora, Guimarães ou o Porto, estes integrando a lista de Património Mundial da UNESCO.

Nesta compreensão alargada, a problemática do património edificado não se limita às questões da identidade e da autenticidade, mas convoca as da sustentabilidade e do que pode trazer ao desenvolvimento das comunidades e dos territórios em que se insere. Aqui são especialmente interessantes as questões do património urbano, categoria muito maltratada entre nós.

A política pública do património edificado em Portugal é marcada por um enfoque no inventário e classificação dos valores individuais, sobretudo monumentos, perspetiva arcaica que ignora outros modelos de ação e descura outras categorias patrimoniais. Note-se a escassa presença de conjuntos urbanos classificados como tal, situação que apenas começou a ser agitada com a inclusão pela UNESCO na sua lista de vários centros históricos, iniciada com Angra do Heroísmo em 1983. Só isto implicou o correspondente reconhecimento pelo Estado português.

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Mais, esta política tem sido muito alicerçada no regime jurídico da proteção e na cautela com a conservação física do património, impondo, em nome de um suposto interesse coletivo, condicionamentos severos ao uso e à adaptação do edificado. Tal abordagem, muito à semelhança dos regimes aplicados aos valores naturais, transfere para os proprietários o exclusivo do ónus e contribui para a desvalorização dos ativos.

Pior ainda, uma orientação cristalizada na integridade – conceito aberto a muito debate, que fica para outra ocasião – e rigidamente contra a necessária adaptabilidade do património edificado – o que na bibliografia em língua inglesa é referido como adaptive reuse – compromete o papel que este pode desempenhar na sociedade atual.

As consequências nefastas desta política, que tem conduzido, objetivamente, à ruína do património, são bem visíveis no estado de abandono, degradação e destruição do edificado. Como bem disse Kevin Lynch, “an environment that cannot be changed invites its own destruction”. Bastaria, sem necessidade de mais argumentos, uma breve visita com olhos de ver a qualquer área urbana histórica para o comprovar.

De facto, a visão que subjaz à nossa política do património edificado ignora um facto essencial: que, com as suas especificidades, este é mais um elemento dos sistemas territoriais e das dinâmicas sociais, não estando isolado deles.

As questões de viabilidade social e económica do património edificado e a sua sustentabilidade a prazo, raramente referidas entre nós e ausentes na política pública, são essenciais nesta problemática. Não está apenas em causa a integridade dos ativos patrimoniais, mas reconhecer que o seu contributo para o desenvolvimento implica um “valor de uso” que os integra no sistema de stakeholders, comunidades locais e visitantes.

Uma visão do património como fator de desenvolvimento impõe também aceitar que a sua sobrevivência deve ser, por princípio, autofinanciada. Significa isso que o património edificado seja capaz de se adaptar, respondendo a novos programas funcionais, de ser socialmente relevante e de ser economicamente viável. Noto que a simples menção, numa mesma frase, das expressões “património” e “economicamente viável” é ainda tida como anátema no meio cultural português…

Acrescento que, pela sua natureza, nas áreas urbanas históricas uma gestão eficaz não pode contar apenas com a intervenção física adaptativa a novas funções do edificado, dentro dos limites da mudança aceitável – o que designamos por reabilitação. Deve também apoiar-se em medidas direcionadas às “componentes intangíveis” do sistema urbano – a competitividade da base económica, a resiliência do tecido social, o valor simbólico.

A criação de condições para a sobrevivência no tempo e a relevância na sociedade do património edificado como elemento vivo deve ser o objetivo central das políticas públicas neste domínio. Para isto, o problema da sua sustentabilidade no quadro das dinâmicas urbanas, sociais, económicas e culturais tem de merecer uma crescente atenção, trazendo, a um tempo, responsabilidade e oportunidades.