Que soluções poderíamos apontar para o desajustamento no mercado da habitação, quer no arrendamento, quer na aquisição, desajustamento que decorre da escassez da oferta e do grande desvio entre o crescimento dos preços no mercado e o reduzido aumento dos rendimentos das famílias? E seriam exequíveis?

Como referi em artigo anterior, e como é reconhecido por muitos, a questão da confiança entre os agentes do sistema urbano na ação do Estado é central em matéria de habitação.

Promover esta confiança implica, em primeiro lugar, contribuir para o funcionamento dos mecanismos de mercado próprios de uma sociedade aberta, com regras claras e essencialmente supletivas. Implica, também, a estabilidade legislativa, para lá dos ciclos eleitorais, e o funcionamento eficaz da Justiça, no que concerne ao arrendamento e a múltiplos aspetos ligados à propriedade. Implica, ainda, a desburocratização e a transparência de procedimentos. Tudo formulações que são estranhas, senão mesmo impossibilidades práticas entre nós.

Infelizmente, a confiança tende a ser a primeira vítima de cada vez que se anunciam novas políticas para o sector da habitação, como se viu agora, por exemplo, com o tão comentado recurso a medidas coercivas. Neste caso, trata-se de algo que não é original entre nós, embora geralmente associado a situações excecionais, mas que decorre da visão que o Estado tem de si e do seu papel. O desejo de moldar uma realidade que nos escapa à medida de uma visão idealizada do funcionamento da sociedade tem destas coisas.

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Um paradoxo é que, até numa perspetiva liberal, temos que conceder que alguma ação do Estado é necessária, mesmo depois de décadas de políticas públicas devastadoras do mercado do arrendamento e das condições do edificado, e com efeitos perversos nas dinâmicas urbanas. Mas, naturalmente, uma ação sensata e eficaz, o que não parece ser o caso, nos termos em que o problema tem sido colocado e nos métodos escolhidos.

Parece evidente que, para resolver a escassez de habitação a preços compatíveis com a capacidade económica das classes médias nacionais, a solução seria aumentar a oferta, criando condições para lançar no mercado mais fogos a preços ajustados, quer para venda, quer para arrendamento, seja em promoção pública, seja por privados.

Tratando-se de um problema com graves efeitos sociais e que pressiona um direito constitucional, não se compreende como é que o Estado não chama a si a liderança na resposta, mobilizando os seus recursos, desde logo os imóveis na sua posse, mas também o contingente de técnicos dos seus quadros. O Estado deve tratar do que é público e colocá-lo ao serviço da comunidade, até porque, apesar de ser um dos principais detentores de propriedade urbana, existe um reconhecido défice de habitação pública em Portugal, tendo em conta os padrões europeus. Outro paradoxo.

Quer isto dizer que a ação do Estado deveria centrar-se em mobilizar o seu extenso património para promover a oferta de habitação a preços controlados, quer diretamente, desenvolvendo projetos e lançando obras, quer, sobretudo, em parceria com privados nacionais e internacionais. Neste património estão edifícios civis correntes, instalações militares obsoletas, imóveis históricos abandonados e até terrenos livres em áreas urbanas centrais. E não se trata só de imóveis desocupados do Estado, de que muito se tem falado, mas da afetação social e economicamente ineficiente de outros tantos, muitas vezes em localizações estratégicas. Nas últimas semanas, muitos exemplos destes edifícios desocupados ou subutilizados têm aparecido nos media, tornando-se até uma curiosidade nacional.

Porque é que uma solução tão óbvia não é posta em prática? Diria que essencialmente por estrangulamentos na gestão da coisa pública e por incapacidade do Estado se organizar nesse sentido, razões bem conhecidas, mas ocultadas nas proclamações políticas. Desde logo, porque não há sequer conhecimento detalhado deste património e do seu potencial de uso. Consta que o Estado lançou há mais de duas décadas (!) um processo de inventariação do seu edificado, com elevados custos e ainda por concluir.

Também por limitações de procedimentos, como a enorme dificuldade em transferir a gestão de imóveis entre ministérios. Veja-se, por exemplo, o grande número de imóveis afetos ao Ministério da Defesa que poderiam ser incluídos num hipotético programa de utilização de imóveis públicos para fins habitacionais. Claro que para um tal programa ter algum impacto na oferta habitacional teria que abranger largas dezenas de imóveis, com autorizações, registos, projetos, concursos, obras. Estão a ver o problema?

A incapacidade revelada para a mobilização do edificado público para fins sociais concretos manifesta-se, aliás, de muitas outras formas. Veja-se o caso, igualmente crítico, do alojamento dos estudantes do ensino superior deslocados, já objeto de vários anúncios de adaptação de edifícios públicos desocupados para residências universitárias.

Uma nota adicional sobre a gestão do património público. Nos poucos casos em que há vontade política e condições operacionais para alienar imóveis subutilizados ou devolutos, o Estado vê-se a si próprio numa lógica de promotor imobiliário, impondo realizar as mesmas mais-valias no mercado e retirando-se de um papel social, cujo desiderato seria a contenção do preço final. Também sobre isto há inúmeros relatos nos media. A consequência é que, pelos custos envolvidos, o produto final da operação irá engrossar a oferta de habitação, sim, mas no segmento de luxo.

No entanto, apesar de tudo isto, vemos agora o Estado disposto a assumir um ambicioso papel na mobilização e no recondicionamento dos imóveis devolutos de propriedade privada, para os lançar no mercado de arrendamento a preços controlados. Aliás, a própria questão destes “devolutos” mereceria melhor reflexão, visto que se criou a ilusão de que equivalem a fogos imediatamente disponíveis e localizados onde fazem falta. Na verdade, esta formulação é ignorante ou intelectualmente desonesta, pois trata-se de um universo geograficamente disperso, com forte ocorrência no interior, de grande diversidade tipológica e em grande parte inadequado ao uso, ou indisponível devido a heranças e a disputas judiciais.

E porque não tem sido possível criar mais habitação de promoção privada para os segmentos médios do mercado? Parece razoável pensar que, num mercado funcional, existindo procura, surgiria oferta organizada para lhe dar resposta, se as operações fossem economicamente interessantes. O desinteresse dos promotores tem a ver, essencialmente, com os custos de vária natureza que oneram a produção de edificado e levam a que o resultado final tenha um preço incomportável para a maioria, outra das dimensões mais referidas do problema habitacional.

Sobre os principais fatores que oneram o custo da construção – solo, materiais, financiamento e impostos – muito se tem refletido nestas páginas. Mas haverá capacidade, ou vontade, para os conter? Ou será outra solução impossível?

A não ser por cedência de terrenos públicos urbanos, será difícil atuar sobre o primeiro fator, atendendo à escassez de solo apto para construção a que a política de ordenamento do território tem conduzido, e bem. A meu ver, este é um “bom problema”, como defensor que sou do paradigma da reabilitação, baseado na reutilização do edificado existente. Como já argumentei noutros artigos, a reabilitação deveria constituir um verdadeiro desígnio nacional, por razões de sustentabilidade, racionalidade económica e urbanidade, devendo merecer, por isso, um programa articulado de incentivos que traria resultados no preço final. Na sua ausência, a reabilitação de imóveis em áreas centrais interessa sobretudo ao mercado de luxo ou à atividade turística, refletindo a centralidade, a qualidade urbana, a procura internacional e o próprio custo inerente ao modelo de reabilitação praticado entre nós.

Quanto ao fator preço dos materiais, tem sido muito afetado pela inflação. Num contexto de economia de mercado não haverá muito a fazer, visto que reflete os custos de produção e a pressão da procura, e até compara bem com os preços médios europeus. O custo de financiamento é outro fator que não controlamos, no contexto da moeda única – a não ser que se volte à bonificação de juros, solução que já se mostrou insustentável – e que se tem agravado, com a subida das taxas de juro nos mercados internacionais. Não é de esperar que tão depressa regresse aos valores historicamente baixos que tivemos nos últimos anos.

Restam os impostos, que representam cerca de 40% do custo da construção, receita de que este Governo não irá prescindir de forma significativa, por muitas razões que aqui não cabem. A ideia de um verdadeiro choque fiscal, que poderia ter forte impacto no preço final da construção, atendendo ao nível de taxação em causa, parece afastada. Em complemento a parcerias para mobilizar o património do Estado, este seria um caminho óbvio para fomentar a oferta de habitação a preços acessíveis. Outra impossibilidade.

Mesmo no arrendamento, a redução anunciada da taxa liberatória em IRS só é significativa quando em contrapartida da duração dos contratos o que, num contexto de incerteza e onde o Governo controla as atualizações das rendas discricionariamente, não será grande incentivo.

Mas há ainda um fator oculto a juntar a estes, os “custos de contexto” decorrentes do (mau) funcionamento geral do Estado. Para além das limitações do funcionamento da Justiça e da burocracia em geral, aqui relevam os custos por via dos procedimentos de licenciamento de obras e de utilizações.

Como é amplamente sabido, os licenciamentos em Portugal são demorados e de resultado imprevisível, penalizados por complexidades e exigências legais kafkianas e regularmente alteradas, apesar das tentativas de “simplificação” empreendidas de tempos a tempos. Na minha passagem por funções públicas, sempre me surpreendeu o desconhecimento nos gabinetes do poder do que é a realidade prática destes processos, apesar de se legislar incessantemente sobre eles. Manifestamente, o legislador nunca teve que entregar um projeto de construção numa câmara municipal e sujeitar-se à trituração pelos serviços do Estado.

O Governo promete agora uma nova simplificação de procedimentos, com uma verdadeira mudança de paradigma que seria a adoção do princípio da confiança em promotores e projetistas, aligeirando ou eliminando os controles prévios. Significa isto que, à semelhança dos países não guiados pela desconfiança do Estado sobre os privados, os projetos seriam aprovados apenas com base nos termos de responsabilidade dos respetivos autores, assim encurtando substancialmente os prazos.

Permitam-me um breve enquadramento, já que a situação em Portugal é particularmente complexa nesta matéria. Atualmente, apenas os projetos de engenharia de estruturas não são sujeitos a controle prévio, fazendo-se fé na responsabilidade do engenheiro. Na maior parte das outras especialidades – designação genérica de todos os projetos para a edificação, que não a arquitetura – existe um procedimento de certificação por entidades externas independentes. Como curiosidade, lembro a recente polémica por causa do terramoto na Turquia, em que se questionou se os nossos edifícios seriam seguros em caso de sismo, e se não seria preferível revogar a regra de confiança nos engenheiros e submeter estes projetos a controle prévio. Isto mostra bem o desconforto da nossa sociedade com este princípio.

E depois há a questão do projeto de arquitetura, especialmente crítica, não apenas pela infinidade de regulamentação que se lhe aplica, mas sobretudo por ser o que fixa a edificabilidade, ou seja, a quantidade de construção permitida nos planos e, portanto, os impactos no território. No licenciamento, o projeto de arquitetura é o primeiro a ser controlado por várias – muitas, e nem sempre as mesmas – entidades e é nesta fase que a maior parte dos prazos são consumidos. Só depois de aprovada a arquitetura são solicitados os projetos das especialidades, sendo importante referir que, apesar do que determina a legislação, esta apreciação demora, não raro, anos. Seria, aliás interessante estudar os tempos médios de aprovação de projetos em Portugal, muito se entenderia sobre os custos da construção.

Se o Estado prescindir, como proclamado, do controle prévio dos projetos de arquitetura, irá verificar a conformidade das edificações com os regulamentos da construção e com as normas urbanísticas a posteriori, por exemplo em sede de fiscalização de obra. Isto poderá trazer consequências muito onerosas – embargos, demolições – imputáveis aos projetistas, se se verificarem desconformidades. Devo esclarecer que no projeto de arquitetura há uma grande margem para interpretações divergentes dos regulamentos aplicáveis, não havendo sequer unidade no próprio entendimento dos serviços públicos. E não está em causa incompetência ou dolo dos projetistas, muitos dos nossos arquitetos mais prestigiados têm queixas sobre a aprovação dos seus projetos. Percebe-se, pois, a reação preocupada dos profissionais do projeto a este anúncio.

Mas há outra razão para ser cético quanto a esta mudança de paradigma. Com raras e honrosas exceções, a orgânica, e a própria cultura, da administração pública parecem baseadas na opacidade e na desconfiança, escoradas na aplicação defensiva e rígida da muita – e, por vezes, contraditória – legislação. Haverá muita resistência a que gerações de funcionários, desmotivados, mal remunerados e criados nesta cultura, mudem a sua atitude e a sua prática por decreto.

Uma forma menos radical – ou talvez não – de lidar com o problema dos prazos no licenciamento seria introduzir mecanismos de transparência e de controlo público na tramitação dos processos, como tem sido feito com sucesso em alguns países. Tal permitiria aos requerentes acompanhar o seu andamento, reclamar dos prazos junto dos serviços envolvidos, expor disparidades no tratamento de projetos comparáveis e combater a corrupção. Mais uma vez, tenho as maiores dúvidas na eficácia de tal mecanismo entre nós, pelas mesmas razões de cultura dos serviços e do quadro de opacidade na decisão pública. Veja-se como a introdução generalizada de portais digitais para a interação com os requerentes pouco alterou os prazos de resposta no licenciamento municipal.

A questão da habitação, como se coloca atualmente em Portugal, é muito complexa e atravessa o funcionamento da sociedade em múltiplo níveis. No que concerne a ação do Estado, tudo isto remete para a qualidade da governação, marcada pela interferência pesada no funcionamento do mercado, falta de boa decisão, operacionalidade e articulação de entidades. Infelizmente, as reformas liberalizadoras enfrentam muita resistência e são momentos muito fugazes na história das nossas políticas públicas. Não é essa a linha consistente da ação do Estado, mas também não parece ser isso que os portugueses maioritariamente querem.