O problema da habitação, que continua sem avanços de nota, interpela a nossa realidade e as disfuncionalidades presentes na sociedade portuguesa, como já argumentei anteriormente nestas páginas. Reflete, também, a incapacidade da governação em gerir eficazmente os recursos detidos pelo Estado e em lidar com as dinâmicas de sistemas complexos.

Na teoria do planeamento o problema da habitação recai nos designados “wicked problems”, como há muito os definiram Rittel e Webber, difíceis de formular, de natureza complexa, com muitos fatores interdependentes e intercruzados noutros problemas. Tudo isto torna muito difícil qualquer solução, o que me levou a considerar, para o contexto português, as aparentes soluções como impossíveis de concretizar.

Destas aparentes soluções, uma tem merecido interesse em meios políticos do centro e da direita, sendo também referida nas propostas de um policy paper recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Posto simplesmente, reconhecendo-se a escassez da oferta, tratar-se-ia de aumentar o solo disponível para construção habitacional, essencialmente por alargamento das áreas urbanas. Alguns vão mesmo ao ponto de propor para o efeito o afrouxamento de medidas de proteção ambiental, por exemplo nos solos integrados na Reserva Ecológica Nacional – REN, para assim libertar mais área para construção. Isto significaria atribuir ao problema da habitação uma prioridade política superior à da defesa do património natural.

Apesar de não subscrever esta abordagem, que me parece apontar um caminho errado, considero que o tema merece discussão. Desde logo, porque recoloca a questão da habitação em termos urbanísticos, aspeto algo esquecido num debate reduzido às mais prementes dimensões económicas e sociais do problema.

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A habitação é a função essencial para a sustentabilidade das cidades, o suporte para a vida e o funcionamento harmonioso do sistema urbano. Dir-se-ia que sem residentes, ancorando nos edifícios e espaços públicos as suas rotinas do dia a dia, não há cidades. São os residentes que asseguram uma procura constante para as funções centrais e que suportam o comércio e serviços de proximidade que são inerentes à própria ideia de urbanidade.

Quando a função habitacional falha, o sistema urbano entra em perda. Todos conhecem a experiência das zonas das cidades muito especializadas, onde não mora ninguém, apenas ocupadas nas horas úteis pelos que aí trabalham: verdadeiros desertos de ruas desoladas, assim que termina o horário de expediente. Esta foi durante muitos anos a imagem das áreas centrais de Lisboa, apenas esbatida nos últimos anos pela presença dos muitos turistas que enchem o espaço público.

A perda habitacional das áreas centrais da capital, bem expressiva desde a década de 1980, deixou uma marca na cidade. Levou à degradação do edificado e do espaço público, comprometeu a viabilidade da estrutura funcional, minou o papel simbólico do “centro”, em suma, enfraqueceu o sistema urbano e tornou-o vulnerável aos desequilíbrios e à pressão por forças exógenas, como o turismo. Como na natureza, o vazio é rapidamente preenchido quando se apresenta uma oportunidade.

Se a habitação é o suporte de uma estrutura funcional viável e é vital para a consolidação e a resiliência do sistema urbano, é também importante atender às características do seu perfil, pois um sector habitacional sem respostas adequadas, distorcido e insustentável não pode assegurar estas condições.

E o que faz a função habitacional sustentável em termos urbanísticos, para além da essencial viabilidade económica? Desde logo a sua diversidade de ofertas, em termos sociais e tipológicos, a capacidade de integrar diversos extratos da população e estruturas familiares dinâmicas. Todo um leque de produtos, da habitação a custos controlados, ao segmento do luxo, dos fogos dirigidos aos jovens em início de vida autónoma, até aos vocacionados para os mais velhos. E se nos produtos para as classes afluentes não parece haver dificuldades na oferta, outros dependem da iniciativa do Estado e de políticas públicas eficazes que estimulem o interesse do mercado. O certo é que a segregação social e funcional, e a especialização excessiva de uma zona numa tipologia ou estrato, gera guetos, afunila e fragiliza a estrutura funcional e empobrece a vida urbana.

Ajudava a esta integração o modelo de promoção habitacional em que tinham forte presença as corporações profissionais, caixas de previdência e outras associações mutualistas, depois continuado pelas cooperativas de habitação. A este respeito, muito haveria a ganhar revisitando os ensinamentos de experiências urbanísticas como o Bairro de Alvalade, antes da aplicação dos modelos que conduziram a espaços inóspitos e estigmatizados, inspirados pelo pior do Movimento Moderno.

A habitação sustentável também deve corresponder a standards adequados às aspirações e estilos de vida da sociedade atual, pese embora limitações que advêm das características do edificado e do espaço urbano, como é o caso nos bairros históricos. Antes do esforço de reabilitação dos últimos anos – aliás dirigido quase em exclusivo às gamas altas, atendendo aos custos envolvidos nas operações – o desajuste do edificado, obsoleto e degradado, às necessidades atuais foi uma das causas do abandono da inner city. E apesar da dinâmica de reabilitação dos anos recentes, ainda se encontram quarteirões inteiros arruinados e ao abandono nas áreas centrais, ou seja, a condição para criar mais habitação na cidade não é necessariamente construir mais.

A fragilidade, o desajuste e a falta de viabilidade económica e social da habitação causam a sua desvalorização como função e debilitam o sistema urbano. Assim, a necessidade de residentes para consolidar a cidade e torná-la mais resiliente é um dos mais fortes argumentos contra o alastramento periférico, uma das grandes causas da nossa insustentabilidade territorial. É verdade que para este alastramento contribuiu a dimensão excessiva dos perímetros urbanos definidos na primeira geração dos planos diretores municipais – PDM, sem prejuízo do importante papel que tiveram como instrumento de políticas públicas. Na altura, a pressão era para alargar, satisfazendo interesses locais, argumentando que assim se fomentaria a competitividade dos concelhos.

Contra o alastramento urbano podemos invocar muitos outros argumentos, como já procurei discutir aqui: a baixa eficiência do sistema territorial disperso, nas infraestruturas, nos equipamentos, nos transportes; o impacto ambiental, pelo consumo de recursos naturais e o acréscimo de emissões poluentes; a perda de qualidade da vida urbana, pelo tempo nas deslocações e o esbater das relações de proximidade. Acresce que o alastramento da mancha urbana acentua os erros que temos cometido em termos de ordenamento do território, ainda mais se ocupar solos não aptos para construção, nomeadamente com o agravamento do risco de catástrofes ambientais.

Vejo com preocupação a insistência numa pseudossolução de oferta de mais terrenos para construção habitacional, que só alimenta a pressão especulativa sobre o solo e nos afasta do modelo urbano compacto que seria desejável. O caminho, a meu ver, passa pelo preenchimento dos muitos espaços intersticiais, sobretudo de propriedade pública, ainda existentes no interior da cidade, e pela reabilitação e mobilização do edificado obsoleto, muito dele também público. Mas isto é o contrário do que habitualmente preferimos: fazer de novo, lançarmo-nos em vistosas obras de raiz, ao invés de valorizar e potenciar os ativos existentes.