O Movimento Cívico pelo Direito a Morrer com Dignidade publicou o seu manifesto há mais de 2 anos. Desde então temo-nos desdobrado em debates pelo país e nos órgãos de comunicação social. Na semana passada publicamos um livro com múltiplos testemunhos, pareceres e críticas vindas de sectores muito distintos da sociedade. Os projetos-lei que agora se apresentam e discutem resultam dessa intervenção cívica e refletem um amadurecimento do debate público.
Mas o debate tem sido pontuado nas últimas semanas por artigos e declarações inaceitáveis, do ponto de vista da verdade e da seriedade. Quem leu os projetos-lei sabe que estão excluídas situações que envolvam crianças, pessoas idosas com demência ou outras patologias que perturbem a sua capacidade de decidir livremente e doentes psiquiátricos. Sabe também que o processo vai requerer vontade reiterada pelo próprio em pelo menos 4 ou 5 situações e que estarão envolvidos sempre mais de 2 médicos. E sabe ainda que se criará uma comissão de acompanhamento do processo, responsável por autorizar a morte assistida. Os critérios são claros, tem que se sofrer de doença terminal ou incurável acompanhada de sofrimento não mitigável. Só por má fé ou descuido irresponsável é que alguns podem falar de doença crónica ou idade avançada. Este tema requeria um debate sereno e responsável mas houve quem o tentasse inquinar, não com o que continham os projetos-lei mas com o que eles não tinham.
Um outro equívoco perigoso é a tentativa de passar a mensagem que a medicina cura e trata tudo. Não é verdade. Os profissionais de saúde conhecem bem a frustração, lidam com ela diariamente. Há doenças que não se curam e há dores que só se tratam colocando o doente inconsciente. Ninguém restabelece a capacidade de andar a um tetraplégico. Ninguém consegue evitar a progressiva paralisia de um doente com esclerose lateral amiotrófica. E ninguém consegue reverter a degradação do corpo num doente com um cancro terminal. Há quem queira morrer de pé e consciente. E também há quem não o queira. Bem-dita diversidade.
Os bastonários da Ordem dos Médicos decidiram assustar a população, alertando para os “perigos” e “abusos” da eutanásia. Estão, com isso, a passar uma mensagem perversa: os cidadãos são incompetentes e os médicos são malfeitores. Mas se os médicos fossem malfeitores, teríamos de reverter uma série de práticas já instituídas como a suspensão de cuidados fúteis ou o testamento vital. Pois o médico malfeitor que poderia ajudar alguém a morrer por razões questionáveis, pode bem suspender cuidados já hoje, pelos mesmos motivos. Felizmente os médicos não são malfeitores e os cidadãos não são competentes. E mesmo que fossem, a forma como estão estruturados os projetos-lei não deixam qualquer margem para abusos ou situações dúbias.
Esperemos que pelo menos os deputados sejam capazes de perceber o fundamental da questão: não estão a decidir sobre como devem morrer os cidadãos, estão a decidir sobre a liberdade para podermos escolher o nosso fim de vida com dignidade, independentemente do que significa dignidade para cada um de nós. Estão a decidir em que tipo de sociedade queremos todos viver: num país plural que convive saudavelmente com a diferença ou num país fechado numa visão exclusiva da vida que impões regras clericais a todos, inclusive os que não se reveem nelas.
Médico, Coordenação do Movimento Cívico pelo Direito a Morrer com Dignidade