Costumo dizer que quase tudo o que acontece entre edifícios é mobilidade: de pessoas, bicicletas, trotinetes, motos, automóveis, eléctricos e autocarros. Esta ideia considera o espaço onde estes modos circulam, aquele que ocupam quando estacionados e a superfície necessária à sua paragem no caso dos transportes públicos.

A forma como distribuímos este espaço-comum determina as nossas escolhas de mobilidade. Tendemos a pensar que optamos pelo automóvel por hábito, ignorando que esse hábito foi criado e é alimentado por cidades (como as nossas) onde 70 a 80% do espaço entre edifícios lhe está alocado; onde as faixas BUS são insuficientes, deixando os autocarros reféns do congestionamento; onde os passeios são, na sua maioria, estreitos, repletos de obstáculos e com pavimentos sofríveis; e onde a rede ciclável é esparsa e cheia de interrupções, muitas destas coincidentes com as intersecções mais arriscadas. Se pensarmos que um percurso de bicicleta é tão bom (ou tão mau) quanto o pior dos seus troços, percebemos que estas rupturas impedem muitas pessoas de optar pela bicicleta no seu dia-a-dia. E colocam em perigo aquelas que não desistem.

Sem colocar em causa a necessidade de melhorar os transportes públicos, importa notar que um sistema de mobilidade eficiente reside na intermodalidade, de pouco adiantando bons transportes se não tivermos passeios dignos que nos convidem a caminhar até estes; nem ciclovias seguras que relacionem os interfaces com toda a cidade; nem condições para chegar de bicicleta a uma estação de comboios a quatro quilómetros de distância quando se mora na periferia, devido a barreiras rodoviárias intransponíveis.

Cidades que privilegiam o automóvel, fazendo tudo para o servir, acabam por incentivar o seu uso, favorecendo a liberdade de quem conduz à custa da liberdade dos demais – o que inclui portadores de deficiência, os mais pobres e os idosos, mas também as crianças, hoje transportadas pelos pais para todo o lado, com prejuízo para a sua autonomia e para a qualidade de vida de pais e filhos.

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A redistribuição do espaço urbano é, pois, indispensável se ambicionamos uma mobilidade mais sustentável e uma sociedade mais justa. E é também necessária à qualidade do nosso espaço público. Sem esta, torna-se inviável pensar em passeios generosos, com esplanadas, lojas e expositores a dar para a rua – sendo que tudo isso é importante para que tenhamos vontade de andar a pé, para que travemos contactos informais com pessoas diferentes de nós e para o nosso sentido de comunidade (o que, per si, soma cinco anos à nossa esperança média de vida).

A redistribuição do espaço urbano é também imprescindível se queremos ter ruas mais verdes. Para além de nos abrigar das ondas de calor que causaram 70 mil mortes na Europa em 2022, a natureza tem um efeito restaurativo comprovado, promovendo o bem-estar, saúde e produtividade. Tendo isso em conta, Paris prepara-se para remover 40% do seu asfalto, o que passa pela redução drástica do estacionamento disponível, pela contínua expansão da rede ciclável e pela pedonalização total ou parcial das ruas onde existem escolas.

Ruas mais verdes e atractivas são parte integrante de uma cidade saudável também porque fomentam a mobilidade activa, combatendo o sedentarismo (e todos os males que daí advéem), o ruído, a poluição e os atropelamentos. A este propósito, vale a pena lembrar que, em Portugal, cerca de 25 mil peões foram atropelados nos últimos cinco anos. Destes, 527 morreram, o que significa que, em média, há uma vítima mortal por atropelamento a cada três dias.

Face a estas e outras externalidades, muitos estudos têm vindo a comparar os custos e benefícios económicos dos vários modos de transporte. Um destes, realizado pela Universidade de Aveiro, estimou que uma transferência modal do carro para a bicicleta de apenas 1,5% pouparia ao Estado português mais de 167 milhões de euros em despesas com saúde, energia e ambiente em 10 anos.

Transformar o paradigma da mobilidade, favorecendo os modos financeiramente acessíveis e a partilha de veículos, permitiria também às famílias portuguesas uma poupança significativa, ao possibilitar-lhes prescindir da posse de um carro (que em Portugal custa cerca de 500 euros por mês) sem perder liberdade. Para muitas, esse alívio financeiro representaria um considerável aumento de poder de compra, sendo que a folga passaria a entrar de forma dispersa na economia — com benefícios para o comércio local, já que quem anda de bicicleta e a pé (ainda que a caminho do transportes públicos) compra menos quantidade, mas compra mais vezes e mais perto, acabando por consumir mais do quem conduz.

Em virtude disso e de as ruas se tornarem mais atractivas, vários estudos atestam um incremento nas vendas sempre que estas são transformadas em prol de quem caminha, contrariando a crença generalizada de clientes e lojistas.

E porque os hábitos se criam, destaco que Portugal é um dos países europeus que menos investe em infraestrutura ciclável (como referência, a Irlanda investe em meio dia mais do que Portugal investe num ano), apesar de ter um dos climas mais favoráveis e de ser o maior produtor de bicicletas da Europa, produzindo 18% das mesmas, na sua maioria para exportação. Consequentemente, é o segundo país da UE onde menos se anda de bicicleta como meio de transporte. Melhorar as condições dadas a este modo — particularmente eficiente em meio urbano e com amplos benefícios — reduzirá a despesa pública e favorecerá uma indústria qualificada que reúne em Aveiro um importante cluster.

Finalmente, mudar as cidades contribuirá para uma mobilidade menos consumidora de energia, facilitando a transição energética e diminuindo as importações. Tal tornará o país mais resiliente às crises e conflitos externos, ao mesmo tempo que contribuirá para uma Europa menos dependente e subsidiária dos fornecedores de combustíveis fósseis anti-democráticos que a ameaçam. E reduzirá substancialmente a nossa pegada de carbono.

Não há mudança sem resistência. Mas também não existe evidência que possa ser perpetuamente ignorada: cidades que priorizam quem anda a pé, de bicicleta e de transportes públicos são mais justas e mais saudáveis, favorecem a economia do Estado e das famílias e oferecem uma melhor qualidade de vida para todos.

Rita Castel’ Branco, arquiteta, especialista em mobilidade urbana e investigadora no CiTUA do Instituto Superior Técnico, é membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.