Oiço com frequência os meus alunos, mais os de 20 que os de 50 anos, dizerem que vão seguir a sua paixão. Ora porque terão de ir à procura de um novo desafio. Como se essa fosse a paixão. Ora porque terão de sair de algum lado e viajar. Como se essa fosse a sua paixão. Ora porque, e esta é verdadeiramente perigosa, porque vão apostar naquilo que gostam mesmo de fazer. Como se essa fosse a sua paixão.

Decodifico.

Ir à procura de um novo desafio não é uma paixão. É um tremor. É uma pulsão. Usualmente pouco avaliada, pouco amadurecida, sem a experiência necessária para contrastar com o que constitui o desafio atual. À procura de um desafio que se desconhece, ou melhor, que se conhece apenas fruto da imaginação, é um perigo. Um desafio porque sim é um frémito. Não uma paixão. E muito teríamos de falar sobre paixão, porque paixão é igualmente frémito, é emoção, mas é sol de pouca dura. De uma paixão, de uma pulsão, se passa a outra e outra. A sede de paixão é um vício. Não um desafio. E não o nosso desafio.

Se se quiser alimentar a vida como uma montanha russa, agora bem-disposto, agora mal, muito mal disposto, então o desafio da mudança pela mudança pode ser uma necessidade. Enquanto a coisa flui está-se em fase positiva pelo que, quando se chegar à negativa, logo se verá. A cada fase negativa, porém, corresponde um esforço sempre maior para o reequilíbrio e para a estabilização.

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Com uma agravante. É que a cada novo desafio não há ponderação suficiente como não há, no desafio atual, uma avaliação do potencial para tornar a realidade num verdadeiro desafio. O que de facto se pensa e se pressupõe é que o que atualmente existe não é desafio. Na realidade, a arte de tornar desafiante o que temos atualmente em mãos é imprescindível até para nos sentirmos desafiados. Reinventar o que temos e reinventar a realidade pode ser, de facto, o maior desafio. E bastante mais compensatório.

Ir à procura de novos lugares não é, concomitantemente, uma paixão. São múltiplas. Configura uma necessidade de atestar de nova adrenalina a mimetização de uma mudança. Não configura uma mudança, por si mesma. Configura a busca de uma sensação de evasão e um proxy à mudança. Mas não é uma mudança pensada, refletida, amadurecida. É uma necessidade de ver, de experienciar. Que, obviamente, se pode igualmente tornar um vício. “A próxima sim, será a minha grande viagem”. E de viagem em viagem se vão colecionando cromos e carimbos de passaporte. Colecionando aparentes experiências. Porém, aguentar dois ou três anos num determinado local e vivê-lo por dentro, pelo lado de quem vive mesmo alguma coisa, é francamente mais complexo. Mas pode ser bastante mais compensatório.

Finalmente, o ir atrás do que se gosta de fazer é perigoso. Muito perigoso. Primeiro porque, normalmente a quem o oiço, não tem experiência suficiente – usualmente porque nunca experimentou – para dizer que é uma sua paixão. E por paixão, enfim, tenho dito. Depois porque o que se quer fazer é uma idealização do que se gostaria de fazer. Sem se perceber que tudo o que se faz tem senãos. Tudo o que são projetos bons tem fases menos boas e ocasiões negativas. Tudo o que se gosta de fazer tem inúmeros problemas de percurso. Oiço, ad nauseam,  a máxima…”quando se gosta do que se faz tudo é mais simples”. Verdade. Mas eu adoro dar aulas e detesto avaliações, sumários, preenchimentos de formulários burocráticos, todos eles, associados. E detesto, por exemplo, dar aulas às 8h00 da manhã. Pelo que tenho sempre de me focar no que gosto de fazer, e faço há 30 anos, para minimizar o que não gosto de fazer, dando-lhe a importância relativa que merece. Confesso que nessas partes, que não aulas, sou de última hora. Não deixo escapar o prazo. Mas guardo o menos bom para a última hora e, se possível, minuto. Quanto às 8:00h da manhã trago sempre na cabeça esta máxima: ninguém merece. Nem eu nem os meus alunos. Pelo que, a ser, vamos tentar que seja o menor suplício possível para a aula que se vai seguir. Para mim como para eles. Fazendo-o for fun.

Portanto e condensando. Paixão é impulso. Não é serenidade. Na serenidade se encontra muito mais a capacidade para se apreciar os projetos, os dias, a vida. Depois, pulsões são frémitos. E não mudança. No projeto, na viagem, no ir fazer o que se gosta. Atenção que a boa mudança é boa. Não porque sim mas sempre porque pensada, estruturada, amadurecida. A mudança, porque sim, não é mudança. É frémito. É impulso. É desconhecimento. É, mesmo, infantilidade. E repor os níveis de estabilidade anteriores, após uma mudança inusitada, após um repentismo qualquer, é complexo. Bem mais complexo.

Não deixo de dizer que seguir uma paixão é um erro. Erro comum em que todos caímos. Por isso, quando lerem, façam como digo. Nem sempre façam como faço.

Nota: Foi lançado no mês passado um livro de título “Dar a Volta”, de Filipa Jardim da Silva. A princípio temi que fosse mais um manual de autoajuda, ainda por cima escrito por uma psicóloga. Porém, mesmo por entre algumas frases bombásticas em termos de comunicação (que ajudarão a vender), tais como “morrer aos 30 e ser enterrado aos 80”, “a felicidade pode ser uma escolha” (apenas se consciente e amadurecida) ou, a mais infeliz, “66 dias para ter uma vida com propósito”, estampada na capa do livro, tem, não obstante, algum conteúdo interessante sobre mudança. Parabéns pela oportunidade a uma autora que desconheço.