Todos os países, a nível mundial, estão a procurar a melhor forma de reduzir gradualmente a paralisação imposta pelo covid-19 (se tal for possível claro), entre eles o equilibrado governo da Nova Zelândia, com Jacinda Ardern como primeira-ministra, que aprovou uma nova lei que se tornou rapidamente polémica porque, como exemplo, permite que apenas 10 pessoas assistam a um serviço religioso mas, no entanto, 100 pessoas se reúnam em outros locais públicos, como restaurantes, shopping centers e cinemas. Esta distinção chamou-me à atenção, e resolvi então analisar um pouco mais este (na altura) projeto de lei.

A legislação já passou por todas as três leituras no Parlamento e recebeu o consentimento real (Royal Assent).

Ainda no último minuto das decisões, foram negociadas quantificações e rectificações, como os funerais receberem uma pequena benesse, permitindo que um máximo de 50 pessoas se reunissem por um período não mais de duas horas… O covid-19 exige uma precisão matemática destas sem dúvida, mas todo o processo parece seguir linhas de governamentação distintas e um sistema de avaliação díspar ou até mesmo arbitrário na minha opinião.

Esta legislação, conhecida como Lei de Resposta à Saúde Pública Covid-19 (Covid-19 Public Health Response Bill), foi aprovada, apesar de imensos protestos públicos, intervenções de alguns membros do Parlamento – incluindo o lançamento de uma petição – e um esforço conjunto dos bispos católicos e anglicanos da Nova Zelândia, pedindo ao governo para aumentar o limite de participantes em serviços religiosos.

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“(..) é o projeto de lei mais anti-democrático que já vimos apresentado ao Parlamento”, afirmou o deputado Simon O’Connor num vídeo pouco antes de o projeto se tornar lei.

De acordo com a análise sumária de O’Connor , “o projeto concede poderes extraordinários – poderes inéditos – ao primeiro-ministro. (…) Basicamente este projeto de lei permite a uma pessoa num país democrático o direito total de decidir para onde você vai, quem você vê, como você opera, quando abre os seus negócios, se pode ir à igreja e que desporto você pode praticar…”

Mas segundo o deputado, mais preocupante, é o facto de que “ele permite que a polícia, a polícia da Nova Zelândia, entre em sua casa sem mandato com base simplesmente na suspeita de que muitos de vocês estejam reunidos na vossa casa”, disse O’Connor, observando que as autoridades policiais não tinha esse poder.

Explicou também que a nova lei permitirá que o governo conceda poderes especiais a cidadãos comuns conhecidos como “agentes de execução”, designados para “espiar” concidadãos e que têm o poder de fechar negócios ou reuniões que considerem ser muito grandes.

Se lermos a lei aprovada, na sub-parte 3 (intitulada “Execução, ofensas e sanções”), comprova-se realmente tudo o que este deputado do parlamento teme (poderá vê-la na integra aqui).

Pessoas autorizadas: A cláusula 18 prevê a autorização de pessoas e classes de pessoas com o objetivo de fazerem cumprir as ordens da seção 11 (ler abaixo). A cláusula 19 exige que agentes da polícia que não sejam policias uniformizados apresentem provas da sua identidade ao exercerem poderes sob este projeto de lei.”

E a cláusula 11 explica:

“A cláusula 11 permite que sejam feitas ordens com o objetivo de lidar com o risco de surto ou disseminação do COVID-19. Duas áreas amplas podem ser objectivos de uma ordem, da seguinte maneira:

  • uma ordem pode estar relacionada a ações de pessoas, impondo requisitos ou proibições relacionadas a assuntos como e onde eles podem ficar, com quem se podem associar, distanciamento físico entre indivíduos, realização de atividades que envolvem contato pessoal próximo, circunstâncias que exijam que estejam isolados ou em quarentena , a sua participação em reuniões e exames ou testes médicos em circunstâncias específicas. Esses requisitos podem estar relacionados a classes de pessoas ou órgãos corporativos ou outras entidades.
  • uma ordem pode estar relacionada a locais, instalações, artesanato, veículos, animais ou outras coisas, exigir ações a serem tomadas, exigir o cumprimento de quaisquer medidas ou impor proibições relacionadas a questões como o encerramento em circunstâncias específicas, a entrada em qualquer porto ou local, reuniões em circunstâncias específicas, isolamento, quarentena ou desinfecção ou teste.

A área de abordagem de acção, por parte do governo é amplamente alargada, e entra de facto consideravelmente mais na orbe da vida privada de cada cidadão. Mas se continuarmos a ler, vemos até que ponto:

A cláusula 20 – Execução – fornece aos agentes de execução poderes de entrada para garantir o cumprimento de ordens. Um oficial de execução pode entrar, sem um mandado, em qualquer terreno, prédio, navio, aeronave ou qualquer outro lugar ou coisa se tiver motivos razoáveis para acreditar que uma pessoa está a deixar de cumprir qualquer aspecto de um pedido. No entanto, a entrada numa residência particular ou marae (local sagrado que serve para propósitos tanto religiosos como sociais) sem mandado, é permitida apenas a um policia e se o policia tiver motivos razoáveis para acreditar que as pessoas se reuniram ali em violação de uma ordem e a entrada é necessária com a finalidade de dar uma orientação sob a cláusula 21 .

A cláusula 21 permite que agentes de execução forneçam instruções para garantir o cumprimento de ordens.

A cláusula 22 permite que policias (ou pessoas agindo sob a autoridade de um policial) fechem estradas e locais públicos com o objetivo de impor medidas relacionadas e contidas na ordem da seção 11. Esta cláusula também permite que policias detenham veículos com o objetivo de fazer cumprir uma ordem que prevê restrição de movimento.

A cláusula 23 permite que agentes de execução abordem pessoas para fornecer obterem informações de identificação.

A cláusula 24 permite que oficiais de execução fechem negócios e empresas que operam em desacordo com uma ordem ou que sejam contrárias a quaisquer condições impostas à sua operação por uma ordem.

Não estou a sugerir que exista algum pressuposto ou ameaça de abuso pré calculado por parte do governo da Nova Zelândia conhecida pelo seu bom senso e harmonia, mas esta lei denota e prova que o covid-19 pode servir de justificação para um alargamento quase total da ação, controle, e poder por parte do governo e forças policiais sobre as vidas privadas dos cidadãos da Nova Zelândia neste caso. O medo e temor do vírus, associado à preocupação de não infectar ou comprometer a comunidade, fez o povo aceitar o que chamaríamos, à umas décadas, totalitarismo, ditadura ou fascismo.

Acrescentando o facto de que o poder de decisão é colocado, centralizado, nas mão de apenas uma pessoa, verificamos que não existem basicamente limites para a ação do governo sobre a vida de um ou de todos os cidadãos. E a nomeação de oficiais de execução – basicamente civis – torna esse controle ainda mais local, ainda mais apertado. Ainda que não interligado de forma alguma, este era o sistema de vigilância política (em vez do vírus) nazi, em que cada rua da Alemanha tinha um responsável que reportava às mais altas instancias o que se passava naquele bairro.

Se recuarmos no tempo, lembramo-nos que o estado de emergência de nível 4 original da Nova Zelândia foi um dos mais rígidos bloqueios de todo o mundo. Segundo o governo, o país entrou agora em restrições mais leves do Nível 2 às 23h59 de quarta- feira, dia 13 de maio.

As restrições eram um pouco como as que tivemos aqui em Portugal, como relata uma cidadã:

“As pessoas não eram livres para se movimentarem, exceto nas caminhadas diárias fora de suas casas. Se isso não fosse possível, seria admissível uma viagem muito curta”. “Uma pessoa por família em supermercados. Nenhuma viagem pela cidade. Não era possível entrar nas instalações da própria empresa, mesmo que sozinho. Bloqueio completo”.

Mas a verdade, é que me parece que esta lei torna o nível 4 algo muito menor do que era suposto ser, e num nível completamente diferente e desfasado. Dá plenos poderes de intervenção nas vidas de cada cidadão, que ainda por cima aceita de boa vontade essa interseção de boa fé.

Uma sensação parecida será quase como quando baixamos um aplicativo na playstore e concordamos com a partilha de todos os nossos dados, e autorizamos o aplicativo a aceder às nossas imagens, vídeos, mensagens, telefones, enfim, à nossa vida privada.

“Quando as sociedades humanas perdem sua liberdade, não é necessariamente porque os tiranos a tiraram”, observou O’Connor, citando o inglês Lord Jonathan Sumption, ex-juiz da Suprema Corte do Reino Unido. “Geralmente é porque as pessoas renunciam voluntariamente a sua liberdade em troca de proteção contra alguma ameaça externa”, disse ele. “É isso que temo que estamos vendo agora.”

Eu não poderia estar mais de acordo. Este desabafo do deputado é o que defendi no artigo “Mundo pós-covid-19”, e por vezes receio pelo futuro dos mais novos.

O deputado finalizou a sua emissão com um grito de alerta: “Acorda Nova Zelândia!” Eu subscrevo: “Acordemos todos!”