Li esta semana uma vinheta, num conto de Nabokov, em que um narrador falava dos anos vinte do século XXI. Imaginava, nesse tempo, que é o nosso, que o quotidiano e os costumes da sua época seriam motivo de curiosidade museológica. Falava do cobrador de bilhetes do eléctrico, que ele via todos os dias em Berlim. Demorava-se nas suas “mãos invulgares”, que, trabalhando “com a agilidade de um pianista”, eram “extraordinariamente ágeis e eficientes, a despeito da sua rudeza e da grossura dos dedos”. Depois, descrevia a sua farda, a sua expressão e gestualidade, projectando que daí a sessenta, setenta anos, a farda do cobrador estaria num museu, juntamente com explicações sobre a sua prática, bem como o eléctrico, no qual trabalhava, meio de transporte entretanto desaparecido. “Penso que reside aqui o sentido da criação literária: retratar objectos correntes como se reflectidos nos espelhos amáveis dos tempos futuros; encontrar nos objectos que nos rodeiam a fragrante ternura que só a posteridade irá discernir e apreciar daqui a muito tempo, quando cada bagatela da nossa vida normal de todos os dias se tornar exótica e festiva por direito próprio: tempos em que aquele que vestir o mais vulgar casaco de hoje estará pronto para uma elegante mascarada.”

Neste fim de ano, tendo como pano de fundo as palavras de Nabokov, entretenho-me a olhar em redor para os nossos costumes. Que partes da nossa vida serão, no futuro, curiosidades de museu? Talvez todos os tempos tenham estado tão certos e ciosos do seu desenvolvimento, tão ensimesmados nas suas criações e invenções, que tenhamos sempre dificuldade em projectar o futuro em que nós e as nossas coisas seremos obsoletos. E, no entanto, quase tudo, dos nossos penteados à maneira como falamos, dos nossos objectos à decoração das nossas casas, a organização das nossas cidades e do nosso tempo, o modo como entendemos o trabalho e as relações que temos uns com os outros, tudo, mesmo quase tudo, será em breve apenas curioso para as gerações vindouras.

Um dia, daqui a pouco tempo, viver como vivemos será matéria de carnaval. Olhando em volta, questiono-me o que permanece, tento fixar-me naquilo que não muda, ou muda pouco. Os livros falam ou tentam capturar aquilo que, de ano para ano, persiste, e são grandes repositórios daquilo que persiste. Mas talvez também nisso Nabokov tenha razão: e falar daquilo que permanece seja vermo-nos hoje com o olhar presumível da posteridade que tomará as nossas coisas como coisa do passado.

Em adolescente, eu e os meus amigos brincávamos dizendo que um dia, daí a muitos anos, o burgo suburbano onde vivíamos, e que achávamos feio e sem sentido, se tornaria pitoresco para as pessoas do futuro, que achariam, imaginávamos, a mesma graça a viver ali que hoje alguns encontram em viver nos bairros típicos de Lisboa. Talvez para nós, em miúdos, essa projecção no futuro fosse uma forma de fugir da fealdade, que nos incomodava. Imaginar no presente a ternura com que o futuro olhará para o que somos hoje, exige um olhar benevolente até em relação às coisas que, no presente, nos fazem sofrer. “Tudo, todas as bagatelas serão valiosas e significativas: a bolsa do condutor, o aviso sobre a janela, aquele peculiar movimento aos solavancos que os nossos netos talvez imaginem: tudo será enobrecido e justificado pela sua idade.” As nossas bagatelas, roupas, hábitos, os nossos erros. E, então, por instantes, imagino essa ala de museu, daqui a duzentos anos, repleta dos nossos telemóveis, televisores, electrodomésticos, computadores, até automóveis: que estranha sucata, à qual terá ido parar o lixo do nosso tempo, quando estivermos todos mortos, contemplada com curiosidade pelos humanos do futuro, acotovelados, em filas, talvez possa ainda imaginar que seria assim, não fosse este mero pensamento apenas um sinal de que a minha imaginação já foi ultrapassada pelos factos do futuro, que apenas entrevejo.

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