Mulher e homem aproximaram-se da peixaria a medo.
– Sempre vi nisto uma amostra do que há de belo no mundo. Repara como os olhos dos peixes brilham. As bocas quase a respirar. Parecem espantados com o que lhes aconteceu. É intenso – comentou o homem enquanto governava o carrinho.
– Só tu para falares disso agora.
– Queres falar de quê? Prefiro comentar o peixe. Aquele robalo, por exemplo. Já pensaste que viveu no fundo do mar? Não me interessa o fundo do mar pelo fundo do mar, mas porque é inacessível. E aqui temos uma amostra, apesar de tudo. Um robalo. Já para não falar do tamboril das profundezas.
– Sendo assim, não vês nada de interessante nos percebes, que vivem nas rochas.
– Na espuma das ondas.
– Ou isso.
– Disseram-me que as grandes cadeias fazem os carrinhos com defeito de fabrico que não é defeito de fabrico – o homem não conseguia orientar o carrinho. – Na verdade, resvalam para os lados porque nos querem perto das prateleiras. Obrigam-nos a comprar.
– Tu queres comprar.
– Sim, mas em liberdade. Não porque o carrinho mande. Para mais, agora fazem-nos de plástico. Deviam ser mais fáceis de manobrar.
Calaram-se. As camas de gelo acomodavam sargos, chernes, trutas e douradas. De olhos fechados, já rendidas, as sapateiras buscavam com as patas o refúgio da água, mas só encontravam lascas de gelo. Fresquíssimas, prontas a servir. O homem contrariava o carrinho a cada passo, embora desse por si em razias às prateleiras. A mulher apoiava a mão no carrinho, mais para encontrar a mão dele do que para ajudá-lo. Deixaram a peixaria.
– De que é que precisávamos? – perguntou ao marido.
– Não me lembro. Nem sei bem o que fazemos aqui.
– A Mariana e o Diogo pediram que levássemos qualquer coisa, não foi?
– É verdade.
Passaram pelo corredor das conservas a caminho do talho. Uma rapariga dizia para outra «Apalpa-me o pernil». O talhante atendia os clientes fatiando um naco de lombo. Não usava luva de cota e reparava-se que a mão já conhecera a lâmina. A faca dividia a carne num sopro. «Apalpas-me o pernil ou não?», insistia a rapariga. «Não é preciso, parece-me perfeitamente», respondeu a outra.
Tiraram a senha, puxando pela língua de papel. Três de antecedência.
– Realmente, está-se bem naquele fresco. Nós não queríamos mesmo nada de lá? Camarões? – o homem insistia.
– Claro que não. Depois cozinhavas no hospital? Não faz sentido. Melhor aqui no talho.
Os bifes do lombo foram entregues por €6,5. As raparigas pediram o pernil. Um fio de suor escorria pela testa do talhante, que o limpou com o avental, deixando à mostra uma camisola do Benfica.
Quando chegou a vez deles, não se decidiam. Olhavam entre si em busca de auxílio, embora não falassem.
– Então, como vai ser?
– Desculpe. A minha mulher esqueceu-se do que queria. Voltamos mais tarde.
A mulher deteve-o mais à frente, nos iogurtes.
– Esqueci-me? Tu também não sabias o que querias.
– Para a próxima assumo a responsabilidade.
O carrinho rodava mais devagar. Crianças remexiam nos frascos, embalagens e sacos.
– Sabes, já estou cansada. Vamos tentar na padaria e depois pronto.
– Sim, tens razão. Não vale a pena voltar à peixaria?
Estavam quase abraçados. Quem os visse pensaria tratar-se de um casal velho mas apaixonado. Não seriam tão velhos, nem tão apaixonados, e as tarefas do dia-a-dia impediam que os transeuntes os observassem. Os funcionários repunham as embalagens. A três corredores de distância, uma menina intensificava uma birra porque queria os ovos Kinder mais caros. E berrava aos pais «Os caros, os caros!», enquanto atirava os baratos para o chão.
Era tarde. Acabara de sair uma fornada. Os sacos ressuavam do pão quente. A funcionária varria as migalhas. O balcão guardava muitos doces, mas eles não queriam doces.
– Vai ser o quê? – perguntou a funcionária.
– O meu marido é que sabe.
– Eu é que sei, sim. Vai ser…
E calou-se. Apontava para um pão da avó já fatiado, mas tão pouco convicto que a funcionária não percebeu. Ele próprio não percebia. Recuou lentamente com a mulher pelo braço. Refugiaram-se perto das bebidas apoiados um no outro.
– Há quanto tempo conhecemos o Diogo e a Mariana? – perguntou o homem.
– Sei lá, desde sempre. Tudo isto é horrível.
– E nós que não nos decidimos.
Chegaram às caixas sem compras no carrinho. A mulher repuxou o cabelo num rabo-de-cavalo e o homem tirou a carteira do bolso. Em vão. Regressaram aos corredores porque não queriam sair derrotados, de mãos a abanar. No meio disto, perguntaram se se amavam. Ele disse que sim. Ela disse que sim.
Por fim, a charcutaria. Ele já vergado, apoiado no carrinho. Ela direita, contida como o rabo-de-cavalo.
– Conhecêmo-los há vinte e cinco anos, desde a faculdade – continuou o homem.
– É isso. O filho nasceu logo depois de se casarem. Terá à volta de vinte anos.
– Terá ainda?
– Tem, ainda tem. Porra. É pouco mais velho do que o nosso filho.
A funcionária tratava dos fiambres. Ordenava as variedades. Sentiu-se o cheiro doce a carne fina, que logo se misturou com o do pão acabado de fazer.
– Este derrete-se – a funcionária levava os dedos à boca. – É manteiga em forma de carne. Levam?
– Não sabemos. Aguarde um bocado, por favor – pediu o homem.
Afastaram-se até aos queijos, longe o suficiente para não serem ouvidos.
– Mas como as coisas aconteceram – a mulher apalpava uma embalagem de mozarela. – Encontraram o filho deles nu. Quase nu, só de cuecas. Na estação de Pombal. Estendido de barriga para baixo. Já viste sítio mais feio para se ser encontrado nu? Não sabem como lá foi parar.
– Pois não.
– Nem sabem quem lhe fez aquilo, espancá-lo daquela maneira. Quase lhe arrancaram o maxilar. Sairá do coma?
– É impossível imaginar o que eles estão a sentir. Quase não conseguiam falar ao telefone.
– Vamos para lá o mais rapidamente possível.
– Ao menos podiam ter dito o que queriam comer – queixou-se o homem. – Ficamo-nos pelo fiambre que é como manteiga?
– Sim, espero que gostem.
Encostaram-se ao balcão lado a lado. Os altifalantes anunciavam «Borrego nacional, inteiro, metades ou quartos por apenas €5».
– Menina, 250 gramas de fiambre, por favor – pediu a mulher.
O fiambre veio fresco no papel vegetal. A funcionária sorriu ao entregá-lo. Distraído, o homem atirou-o para o fundo do carrinho, rompendo o papel.
– Cuidado, não amachuques o fiambre.
– Desculpa.
Pagaram de mãos dadas. Embora consternados pelo filho dos amigos, sentiam-se contentes, e nunca o admitiriam, por não terem sido eles a precisar de fiambre.

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