Chegaram a estar agendados para a mesma sessão, até pela proximidade das datas: 5 e 7 de Outubro. Foram discutidos no princípio do mês, em reuniões sucessivas da Assembleia Municipal de Lisboa, dois assuntos. Portugal, a propósito de um Voto apresentado pelo PPM de Saudação pelos 881 anos do Tratado de Zamora, em que Afonso VII de Leão e Castela reconhece a independência do Condado Portucalense e Afonso Henriques como rei, a 5 de Outubro de 1143. Alguns consideram (e celebram) este dia como a primeira data da fundação de Portugal. E discutiu-se Israel, a propósito de um Voto de Repúdio pelos ataques do Hamas, a 7 de Outubro de 2023. Na realidade, foram discutidos dois Votos, um de Repúdio apresentado pelo PPM, outro de Pesar apresentado pelo CDS, ambos pelo mesmo ataque e no mesmo sentido.

Veremos onde estes dois assuntos se cruzam, o que têm em comum, e de que maneira a história da fundação de Portugal nos pode ajudar a compreender a guerra no Médio Oriente.

Portugal é um dos países mais antigos do mundo, no sentido em que existe como nação e com as fronteiras estabilizadas há mais tempo. O Tratado de Zamora, em 1143, terá sido a primeira data; mas foi preciso esperar trinta e seis anos pela Bula Manifestis Probatum, em 1179, carta em que o papa Alexandre III valida o Tratado de Zamora, reconhecendo oficialmente o reino de Portugal e respectiva soberania. Ainda assim, mantém-se eternamente discutível qual a data exacta da nossa fundação com as fronteiras de hoje. Houve batalhas antes e depois destes documentos, invasões e conquistas aos mouros para sul, e alguns dos territórios actuais só foram dominados e estabilizados em reinados posteriores. Ao contrário da maioria dos países, nós não temos um feriado nacional coincidente com a nossa fundação ou independência, em parte porque essa data é impossível de fixar.

Onde é que o longuíssimo processo da nossa fundação entronca com o ataque do Hamas a Israel? Entronca na lógica de um argumento: “A história não começou a 7 de Outubro”, ou, na brumosa formulação de Guterres, “os ataques não ocorreram no vácuo”. Numa ou na outra versão, este é um dos principais argumentos do Hamas. O núcleo deste argumento, reduzido à sua premissa fundamental, é que Israel é um Estado ilegítimo. Na base deste argumento, a ilegitimidade de Israel está na maneira como foi criado, tirando territórios pertencentes aos palestinianos, expulsando os palestinianos das suas casas sem os consultar e com toda a brutalidade. Pelo processo da sua fundação, e segundo a tese do Hamas, Israel é um “Estado colonial”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não vamos discutir se é verdade ou não. Para a economia e para a lógica do nosso percurso mental, vamos imaginar que sim, é verdade.

O que também é verdade, e disso temos a certeza, é que se recuarmos o suficiente quase todos os países foram fundados na invasão, colonização, e conquista brutal de territórios. Portugal, como vimos, não tem uma génese diferente: também foi fundado na invasão, colonização, e conquista brutal de territórios. E o facto é que, gostemos ou não, Israel existe, como Portugal existe; somos, num país e no outro, quase 10 milhões de pessoas. Somos países muito semelhantes em termos de população, e diferentes em densidade populacional: Israel tem cerca de um quinto da área do nosso território. Pensar que estes 10 milhões de pessoas podem ou devem aceitar a destruição do país delas é uma fantasia absurda. Israel não aceita como Portugal não aceitaria. Imaginemos que os marroquinos acordavam com uma ideia…

Nenhum governo, de nenhum país, estaria disposto a tolerar ataques com mísseis aos seus habitantes, nem matanças, selvajarias, violações e reféns, em nenhuma circunstância, independentemente da história e da legitimidade da sua fundação. A paz no Médio Oriente não será conseguida tentando desfazer muitas décadas de história. Qualquer país, qualquer um de nós, reagiria como o Estado de Israel, com a diferença de que teria o apoio da comunidade internacional. Em vez disso, Israel é acusado de imoralidade, tem o Ocidente hesitante, e tem a ONU objectivamente ao lado dos terroristas.