Bem menos que meio ano depois de o novo governo ter tomado posse, as notícias sobre o que o governo de António Costa deixou nas mãos das do governo de Luís Montenegro vão-se acumulando. Poucas delas jamais poderiam ser agradáveis.

Ainda em Abril, o Conselho de Finanças Públicas (CPF) divulgou que a diminuição da dívida pública medida em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) acima do esperado foi provida de recompras adicionais de dívida portuguesa de longo prazo durante mais de duas semanas de Dezembro de 2023. O Conselho das Finanças Públicas admitiu que, entre 13 e 29 de Dezembro de 2023, o Estado português efectuou recompras adicionais de dívida portuguesa de longo-prazo emitida por si próprio (Obrigações de Tesouro). Mais concretamente, as recompras de Obrigações do Tesouro (OT) em 2023 foram aproximadamente 1.7 milhões de euros acrescidas do que em 2022. Enquanto em 2022 o valor nominal (a quantia que tem que ser devolvida pelo Estado aos investidores à maturidade) tinha sido de 4326 milhões de euros e o valor de encaixe (o valor de mercado destas obrigações) de 4508 milhões de euros, em 2023 passou para 6203 e 6076 milhões de euros, respetivamente.

A Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) contactou, segundo um artigo publicado no Expresso a 5 de Janeiro de 2024, bancos e seguradoras para recomprar dívida pública. O objectivo do Estado português foi recomprar os títulos disponíveis na carteira dos bancos e estes acederem ao pedido. Ao que parece, os pedidos de recompra da dívida foram feitos sem pressão por parte do Estado. O mesmo artigo indicou que o Estado poderia ter ido procurar dívida a fundos de pensões, onde também existe dívida soberana. Os bancos contribuíram com cerca de 3 mil milhões de euros e as seguradoras, como a Fidelidade e Tranquilidade, contribuiu com mais de 10 milhões de euros. Os bancos e seguradoras que acederam ao pedido do Estado português ficaram com recursos para fazer novas aplicações, sabendo que encaixaram dinheiro após as alienações que não antecipavam. Nos seus encontros com os gestores financeiros, a IGCP justificou estas operações por se verificar um excesso de tesouraria, liquidez, pelo que o sacrifício dos depósitos a favor de uma dívida mais baixa justificaria a recompra de dívida por parte do Estado português. Uma fonte ligada aos mercados referiu que a investida do Estado português na recompra de dívida serviu para colocar a dívida pública abaixo do limiar dos 100% do PIB e fazer, através disso, “um brilharete”. Outra fonte, indo contra uma tendência de outras em considerarem os contactos feitos aos bancos e às seguradoras para o referido efeito como normais, assumiu temer que estes movimentos não passaram de uma operação de marketing do governo então em vigor que poderia vir a condicionar a atividade do governo seguinte.

Segundo um relatório da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), no dia 29 de Dezembro do ano passado, a Águas de Portugal, que tem como acionistas a Parpública e a CGD (Caixa Geral de Depósitos), efectou o pagamento de um dividendo extraordinário de 100 milhões de euros ao Estado português. Este pagamento resultou de uma imposição do então ministro Fernando Medina à gestão da empresa pública, contra a vontade do líder da empresa, José Furtado. A Águas de Portugal transferiu 30 milhões de dividendos por conta dos lucros de 2022, de valor aproximado de 100 milhões de euros, e acabou por vir a reforçar essa transferência com uma operação extraordinária de 100 milhões de euros. No final, foram 130 milhões de euros de dividendos, tento excedido, portanto, em 30 milhões de euros o valor dos lucros. Quase como se fosse para convencer Furtado a não se demitir, o Governo, na representação de Costa e de Medina, comprometeu-se a garantir um aumento de capital assim que a Águas de Portugal precisasse dos tais 100 milhões de euros para continuar o plano de investimentos.

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A leitura do mesmo relatório alerta para a necessidade de uma leitura crítica de informações relativas à dívida pública portuguesa. Se, por um lado, o conceito de dívida pública previsto por Maastricht corresponde a uma dívida consolidada (valor que não tem em conta as parcelas detidas por unidades orgânicas no interior da Administração Pública), uma visão mais abrangente deve levar a que se considere que, segundo um artigo do Instituto Mais Liberdade, “a dívida pública detida pelas Administrações Públicas sob a forma de títulos equivalia a 15.5 mil milhões de euros” em Dezembro de 2022 e a 23.5 milhões em Dezembro de 2023.

Resumindo o conteúdo desse relatório, a UTAO, coordenada por Rui Nuno Baleiras, considerou que foram os excedentes orçamentais e a “busca deliberada de aplicações em títulos” que determinaram o acréscimo substancial dos factores de consolidação da dívida pública em 2023. Em Setembro de 2023, a dívida pública registou o valor de 280 mil milhões de euros e caiu, nos três meses seguintes, para 263 mil milhões de euros (uma redução de 17 mil milhões).  A artificialidade da redução da dívida pública constata-se por restar uma “obrigação de servir a dívida detida por entidades públicas” para os contribuintes. Segundo a mesma entidade, trata-se de uma situação que reflete a tomada de opções políticas conducentes a uma “redução no valor da dívida pública de Maastricht sem ser por redução no stock na dívida viva”. O Instituto Mais Liberdade também é esclarecedor: segundo um dos seus artigos da série Mais Factos, o governo anterior optou por uma manobra financeira que permitiu que “a dívida pública (em % do PIB)”, no final de 2023, “se fixasse em 99.1%, mas se acrescentarmos a dívida pública detida pelas Administrações Públicas sob a forma de títulos, a dívida pública portuguesa sobre para 107.9% do PIB”.

Chegados aqui, é mais que tempo de ficarmos irados com Fernando Medina e o seu governo, que se esqueceu de dizer que as Administrações Públicas não detinham menos dívida no final de 2023 do que no final de 2022. Na verdade, detinham (como foi mencionado há dois parágrafos atrás) mais 8 milhões de euros em dívida no último mês de 2023 do que exactamente um ano atrás. Para além disso, há que interrogar como é que a dívida pública portuguesa conseguiu ser reduzida em 17 mil milhões de euros em apenas três meses.

Já lá vão os anos em que Portugal cumpria um dos critérios elementares de Maastricht: manter o rácio da dívida pública no PIB abaixo ou igual a 60%. Durante este século, a dívida pública (em percentagem) no PIB saltou várias vezes, tendo o seu auge sido registado em 2020 (ano de implementação de políticas públicas anti-COVID), quando atingiu os 134.9 %. A ilusão de uma dívida pública especialmente baixa e a facilidade com que nos esquecemos do quão distante estamos de cumprir com valores aceitáveis (segundo a óptica de Maastricht) de proporção da dívida pública no PIB desvia-nos de muitas oportunidades para refletirmos sobre como podemos colocar o PIB a crescer de forma sustentada e consistente.

Já em Maio, o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, deu conta de ter encontrado “situações preocupantes” nas contas públicas, especialmente medidas aprovadas pelo anterior governo após as eleições, que se traduziram numa perda substancial das reservas do Ministério das Finanças. Parte dessa falta de cuidado com essas reservas passou, segundo o ministro, pela aprovação de “despesas excepcionais de 1080 milhões de euros, dos quais 950 milhões já depois das eleições”. Ainda segundo o mesmo, que facultou estas informações numa conferência de imprensa, o governo anterior, desde a demissão de António Costa, aprovou 108 resoluções do Conselho de Ministros, aproveitando para dizer que o governo liderado pelo PS subestimou o nível de exigência da situação orçamental em que o país se encontra. Entre essas resoluções, das quais pelo menos três “não têm cabimento orçamental”, encontram-se 100 milhões de euros de apoio aos agricultores para a seca, a compra de vacinas contra a COVID-19 e 200 milhões de euros para a recuperação do parque escolar. Para Miranda Sarmento, o governo anterior teve um comportamento “eleitoralista”, tendo apresentado “um conjunto de promessas” para as quais muito possivelmente não tinha legitimidade nem verba inscrita.

Lá no fundo, Medina e os seus colegas de governo tentaram agradar a um público que tem uma noção mínima de que a redução da dívida pública é um objetivo digno de um governo, especialmente se conseguir meter o seu valor abaixo do PIB. Mas ter escondido a quantidade de dívida pública que as Administrações Públicas acabaram por deter no final do mandato sugere que o anterior governo era composto por pessoas que tendiam a ver a dívida pública como um ativo e não como um desafio a ser superado ou um problema a ser resolvido. O Professor Daniel Lacalle, na sua obra Escape From the Central Bank Trap: How to Escape From the $20 Trillion Monetary Expansion Unharmed, sabe descrever brevemente este raciocínio: a dívida pública não passa de dinheiro injectado na economia, o que por sua vez leva a mais crescimento e riqueza para os cidadãos, e nunca haverá necessidade de pagar de volta esse dinheiro. Portanto, a dívida pública é um ativo porque é composta por notas promissórias emitidas que nunca são pagas, mas apenas refinanciadas (através do juro). As consequências de uma dívida pública com valores próximos dos do PIB ou mesmo muito superiores ao do PIB são, segundo Lacalle: a imposição de um custo mais elevado do que o costume em juros; a quebra progressiva do poder de compra da moeda nacional (desvalorização do dinheiro) e consequente falta de criação de riqueza; uma espiral de emissão de dinheiro e resultante valores de défice e de dívida acrescidos, o que provoca um ciclo vicioso de dívida não-produtiva e de estagnação.

A experiência deveria contribuir para que aqueles que apostam na criação de riqueza, ou crescimento económico, influenciassem mais o rumo do país. Quer seja pela presença no executivo, quer seja através da mobilização significativa dos cidadãos e dos eleitores portugueses, aqueles que defendem uma redução do tamanho do Estado, que combatem a monstruosidade fiscal que tem assombrado Portugal durante anos e o despesismo que nos sobrecarrega com taxas de juro elevadas a médio e a curto prazo devem ser mais respeitados nos anos vindouros. Sei que não é fácil fazer sugestões quanto a caminhos de desenvolvimento a seguir, por facilmente se ser associado à troika e à austeridade, mas a história vem em auxílio daqueles que verdadeiramente amam o seu país. Celebrar o crescimento das pessoas e das empresas, promover a eficiência e a inovação, reverter os níveis elevadíssimos de fiscalidade sobre as pessoas, as famílias e as organizações produtivas: é esse o caminho. É um caminho distante da aprovação de medidas destituídas de uma análise de sustentabilidade (orçamental) prévia e de manipulações nos indicadores de crescimento económico do país para fins estéticos e publicitários. Esperemos que esses fiquem de fora do arco de governação durante muitos anos. Terão começado os meses de ruptura? Já poderemos ver em breve alguma luz no fundo do túnel?