A História traz-nos abundantes exemplos de sociedades que conceberam a militarização e o condicionamento militar dos seus elementos como um mecanismo de reforço da cidadania e da sua força e capacidade de afirmação como Nação perante terceiros. Tais exemplos são muito úteis e reveladores sobre os contornos do recente entusiasmo com a reintrodução do Serviço Militar Obrigatório (SMO), defendida em vários países, nomeadamente europeus, por uns tantos suspeitos do costume.
O exemplo mais relevante e expressivo será provavelmente o de Esparta, e dos séculos da sua ascensão e queda no Peloponeso. Do que nos chegou pelo relato a posteriori de Plutarco, toda a lógica da sociedade de Esparta circulava, desde o nascimento até à morte de cada um, em torno do treino, da disciplina e da guerra. A cidadania plena, a validade (e sobrevivência) como indivíduos estavam subjugadas ao reconhecimento e escrutínio dos pares e a um ordenamento de costumes e práticas de pendor fortemente igualitário.
Citando Bertrand Russell e a sua leitura da narrativa de Plutarco: “[a]té aos vinte anos, todos todos os rapazes eram treinados numa grande escola; o objecto do treino era torná-los duros, indiferentes à dor, e submissos à disciplina”. Acrescentou: “[n]ão havia disparates de educação cultural ou científica; o único objectivo era produzir bons soldados, inteiramente devotos do Estado”.
A utilização da prática militar como ferramenta de doutrinação e afirmação da submissão do indivíduo perante o colectivo está pejada deste e de tantos outros exemplos. Não faltam certamente memórias de exaltação militar de estados totalitários, a maior parte das vezes até à pessoa do próprio ditador confundido com general.
Mas como primeiro ponto, é importante constatar que não falamos verdadeiramente de cidadania. Com estas ferramentas de mobilização forçada (como o SMO) não falamos afinal de cidadãos. Falamos sim de um exercício de demonstração de poder do estado sobre os indivíduos, de uma afirmação unilateral e coerciva da sua capacidade de dispôr da sua propriedade, das suas escolhas e prioridades, do seu tempo e – no limite – das suas próprias vidas.
O anunciado objectivo de fortalecimento da cidadania e dos valores individuais torna-se afinal tão somente num flectir do músculo do Estado, simultaneamente satisfeito por alimentar com mais carne fresca e barata o triturador dos seus interesses militares e geoestratégicos. E, em última instância, dos interesses pessoais dos seus titulares.
Porque se há algo que a História também demonstra é que, para além de realidades quase distópicas e militarmente holísticas como a de Esparta, o que sobra militarmente da mobilização e recrutamento forçados é muito pouco.
Numa realidade de forte sofisticação e de necessidades de treino em realidades operacionais crescentemente complexas, querer regressar a um passado da força dos números soa a um certo saudosismo de um certo esforço militar de morticínio e de martírio a que várias vezes assistimos mas que se espera que não regresse. O que se esperaria ver defendido, em alternativa, é antes a defesa da qualidade dos equipamentos e do treino de activos, activos esses não subjugados mas sim devidamente motivados e que escolheram integrar de sua vontade as Forças Armadas.
O que demonstra a convivência histórica entre militares profissionalizados e recrutados (acrescentando-se também a originalidade das unidades penais militares) é que a maior parte das vezes a falta de moral e preparação – e bem assim o próprio facto de estarem a lutar sob ameaça de procedimento marcial – tornava os últimos mais frequentemente num risco operacional do que numa vantagem no terreno, risco esse normalmente só colmatado pelo carácter massivo com que eram dizimados para deter o inimigo.
O que sobra de tudo isto? Sobra que, com o actual panorama de vários conflitos militares espalhados pelo Mundo fora, a lógica dos interesses geoestratégicos e das alianças faz com que a Máquina de Guerra esteja particularmente carente de activos que a alimentem com a sua vida e com o seu número. Desde uma União Europeia que, não tendo qualquer mandado de natureza militar dos seus Estados-Membros, se entretém a extravasar as suas competências ensaiando uma retórica e testando iniciativas progressivamente mais belicistas, passando pelos responsáveis pelos mais diversos actores europeus ansiosos por demonstrar força ou expandir os seus interesses e influência, tudo se conjuga para mais uma vez chamar às linhas da frente devidamente escolhidas os subjugados que a isso não consigam fugir.
O discurso da “defesa do território” e da Nação, com participação em conflitos longínquos em nome de interesses muitas vezes estranhos e questionáveis num Mundo de alianças militares parece querer regressar aos conflitos por procuração (agora aditivados pela presença mais óbvia do representado).
É a pobre desculpa que se parece querer impingir aos incautos, enquanto se aguarda pela sua convocatória e se recruta por motivos mais altos para essas linhas da frente.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.