“A União Ibérica não é actualmente o programa de nenhum dos partidos espanhóis, mas é o instinto de todos”, escreveu Oliveira Martins. Mas o grande historiador, autor de uma épica Vida de Nun’Álvares – o refundador de Portugal e o homem das formas superiores de luta da guerra da independência –, também teve as suas tentações iberistas. Tal como Eça, Antero, Latino Coelho ou Lopes de Mendonça; todos intelectuais, embora Martins fosse também político e até, por breve tempo, Ministro da Fazenda, ou seja, das Finanças.
O crepúsculo do Iberismo
Do lado espanhol, significativamente, foram mais os políticos, como Emilio Castelar, Cánovas del Castillo e o próprio Afonso XIII, quem alimentou tais tendências. Mas tratou-se de um fenómeno essencialmente do século XIX e a advertência de Oliveira Martins não parece ter hoje aplicação. Numa Espanha partida a meio, com uma direita nacional representada pelo Vox, que surgiu e cresceu por causa da Catalunha, tal como já acontecera com o Ciudadanos, e de alguma complacência do Partido Popular com a questão da unidade da Espanha, não creio que sobre tempo ou espaço para projectos anexionistas. Com toda a simpatia e solidariedade pelos nossos irmãos peninsulares, que querem manter a unidade da Espanha, o tempo e o trabalho que terão de ter para a garantir, acaba por excluir, à partida, quaisquer preocupações ou “projectos ibéricos”.
E, por cá, os poucos iberistas surgem como uma espécie de masoquistas fronteiriços, apostados em redefinir fronteiras num Estado Nacional que tem como um dos poucos trunfos geopolíticos a unidade e a ausência de periferias centrífugas ou de identidades regionais ou linguísticas. De vez em quando arranjam até umas sondagens a dizer que metade dos portugueses quer ser ibérica ou espanhola. Não conheço nenhum. Ou então serão como o Ega, no jantar do Hotel Central de Os Maias, partidários de uma invasão espanhola sem riscos de perda de independência, pedindo ao “Deus de Ourique”, que nos “mande o castelhano” (para efeitos de uma “medonha tareia” que possa varrer “a choldra” e “regenerar a nação”) … e ao banqueiro mais próximo que lhe “passe o St. Emilion”.
Para o bem ou para o mal, e apesar do incremento das relações económicas e da penetração do capital espanhol na nossa economia, acho, por isso, ultrapassado o risco das “uniões ibéricas”. Até porque, em termos de conhecimento e de atenção a Portugal, estamos como há meio século, quando Salazar teve o AVC e um espanhol relativamente importante que por aqui estava sugeriu, num círculo de amigos portugueses, preocupados com o futuro próximo: “Pero tienen Ustedes a Fragoso!” Falava do Presidente da República Marechal Óscar Fragoso Carmona, há vinte anos morto e enterrado.
Com excepção dos núcleos políticos, económicos e académicos que têm interesse ou necessidade directa de seguir Portugal, a ignorância espanhola sobre o nosso país (uma ignorância-indiferença, quase snob), continua a ser a norma. Tal como a norma do lado de cá da fronteira, embora com conhecimento talvez um pouco mais alargado, seja uma desconfiança simpática em relação a Espanha, que vai, nas memórias dos mais políticos, da Falange e de Franco à Passionária e ao “morrer em Madrid”, dos encantos e trabalhos dos exílios aos filmes de Almodovar e aos livros de Perez Reverte. De resto, eles ignoram-nos e não se importam de o disfarçar, e nós desconfiamos deles. Conheço, entre vizinhos, piores relações.
Símbolo da Independência
Mas com tudo isto, e porque nos devolveu a independência, o Primeiro de Dezembro continua a ser uma data importante, uma data-chave do que foi uma repetição conspiratória das vitórias que obrigaram Afonso VII a reconhecer Afonso Henriques em Zamora, e do campo de Aljubarrota.
E foi o princípio de uma longa guerra da Restauração, travada no terreno, sempre com vitórias em desproporção de forças e também com um grande desempenho diplomático, em que se distinguiu o Padre António Vieira, conseguindo uma aliança na Europa, com os Países Baixos, ao mesmo tempo que reconquistávamos às companhias majestáticas holandesas o Nordeste brasileiro e Luanda.
Relembrando a importância da data, foi criada em Maio de 1861 uma Comissão Central do 1º de Dezembro (que depois daria origem à actual SHIP). Veio, precisamente, num momento em que os entusiasmos iberistas andavam elevados, em Espanha e por cá. Por isso apareceu um manifesto, assinado entre outros, por Anselmo Braamcamp, Inocêncio Francisco da Silva (o do Dicionário Bibliográfico Português), José Estêvão, Mendes Leal, Rebelo da Silva, o Conde de Almada, o Conde do Redondo, Domingos Ferreira Pinto Basto (filho do fundador da Vista Alegre e administrador da fábrica), Rebelo da Silva. E, claro, o mais ilustre de todos, Alexandre Herculano.
O 1º de Dezembro é assim para Portugal e para a independência de Portugal uma data fundacional ou de refundação da independência. É o feriado mais antigo vindo da Monarquia Constitucional, aceite pela República, continuado no Estado Novo e na Terceiro República. Em 2012, um governo PSD-CDS teve a triste ideia de o abolir ou “suspender” e a coligação passou pela vergonha de ser o PS a restaurá-lo em Janeiro de 2016, depois de uma campanha de protesto que uniu gente de todo o espectro político, de um extremo ao outro, como sucedeu com Timor.
A morte de um Heterodoxo
Há estranhas coincidências neste jogo dos números em que os astrólogos antigos e modernos gostam de se enredar. Pessoalmente não as atribuo a misteriosos dedos de Deus, da Providência ou dos astros: pero que las hay, las hay, e não deixam de nos tocar. Lembro-me bem que, no dia 10 de Junho de 1979, o primeiro 10 de Junho que passei em Portugal, depois dos exílios africano, brasileiro e madrileno, morreu o Joaquim Paço d’Arcos, um escritor para quem Portugal e o Império português tinham contado muito.
Agora, neste Primeiro de Dezembro, dia da restauração ou ressurreição de Portugal como Estado livre e independente da tutela da Monarquia Dual, morreu Eduardo Lourenço. Um pensador que, apesar do risco das unanimidades festivas e consagratórias, resistiu na sua heterodoxia de português do Portugal profundo, do Portugal da serra e da Guarda dos sanatórios, que, por também ser um português do mundo, lhe lembrava o Davos do Thomas Mann. Porque para Eduardo Lourenço, que tanto pensou e “des-pensou” Portugal, ser português era também ser um português do mundo e aberto ao mundo, como Portugal sempre fora, até por necessidade, mesmo quando o diziam “orgulhosamente só”.
A Heterodoxia de Eduardo Lourenço, a Heterodoxia I, de 1949, veio num tempo em que havia uma ortodoxia oficial, representada pelo nacional-catolicismo de uma Igreja ainda com memória da Primeira República, e uma ortodoxia oposicionista, marxista-leninista, que emparelhava em exigência de obediência e em controle agressivo da dissidência com o policiamento da ortodoxia oficial.
O jovem Eduardo Lourenço, então com 26 anos, confrontava estas duas ortodoxias, a das instituições e a do cânone marxista, então dominante no mundo das Letras. Era a “ditadura intelectual das esquerdas” que se opunha e fazia paralelo com a “ditadura política das direitas”. Lembro-me de Jorge Borges de Macedo me ter chamado a atenção para a Heterodoxia de Lourenço como um livro de grande coragem. Para alguém que estava no terreno do pensamento e da cultura, sair da linha geral que triunfava nos países que intelectualmente mais influenciavam a periferia lusitana – a França e a Itália – era obra. Países onde, no final da Segunda Guerra Mundial, aproveitando as Libertações de Agosto de 1944 e de Abril de 1945, os comunistas, jogando na táctica da amálgama, tinham eliminado, além dos “colaboracionistas” e dos “fascistas”, parte da direita nacional. Quando digo eliminado, quero dizer eliminado deste mundo para outro melhor – ou pior, conforme os méritos de cada um.
Eduardo Lourenço era um heterodoxo que não deixava de reconhecer a força ideológica e a força política das ortodoxias. E depois de um empenho filosófico radical, da procura do saber e da verdade nos grandes textos do pensamento ocidental, não desdenhou comentar, inteligentemente e sempre com profundidade, a actualidade política. E se via a heterodoxia como necessária, ou mesmo essencial para pensar e “des-pensar” as coisas, via também que a ausência total de ortodoxias, de valores, de alma, que agora reconhecia num Ocidente e numa Europa descristianizados e até desmarxizados, não poderia ser senão fatal.
Talvez por isso tenha sido na Literatura, nas palavras dos grandes poetas e dos grandes romancistas, capazes de exprimir intensamente e de reinventar a alma e a identidade de um Povo, nas suas ambiguidades e contradições, que Eduardo Lourenço construiu uma heterodoxia interrogativa sobre Portugal e os portugueses. Uma obra livre e viva que, como ele, soube resistir aos esforços institucionais das consagrações e das unanimidades em vida. O que é obra.