Nicolas Maduro enviou uma carta ao Papa Francisco, pedindo-lhe ajuda e mediação na crise que a Venezuela enfrenta. “Disse-lhe que estou ao serviço da causa de Cristo (…) e, nesse espírito, pedi a sua ajuda no processo de facilitação e de reforço do diálogo“.

É prática comum nos dias que correm invocar-se Cristo, a Igreja e o Papa em nome de tudo e o seu contrário (Ana Leal, por exemplo, associou-se “ao Deus do Papa Francisco” após publicar uma “reportagem” absolutamente imprestável, que viola os direitos à imagem, à reserva da vida privada e ao livre exercício da profissão e religião de diversas pessoas). O mais espantoso – e sintomático de ignorância ou má fé – é quando estas invocações partem da boca de quem pratica exatamente o contrário do que Cristo, a Igreja e o Papa ensinam. É o caso do ditador da Venezuela.

Nicolas Maduro, que está ao serviço da causa de Cristo, saberá que a Igreja entende a propriedade privada – o salário transformado, nas palavras de Leão XIII – como de direito natural e se opõe veementemente à luta de classes e à sua dialética da violência? Não é de hoje a lição; já em 1891, Leão XIII escrevia, na Rerum Novarum, que a ideia de luta de classes é «uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exactamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital», ao que Pio XI acrescentou, mais tarde, com a publicação da Quadragesimo Anno, que a cura só «será perfeita, quando a estas classes opostas se substituírem organismos bem constituídos, ordens ou profissões, que agrupem os indivíduos, não segundo a sua categoria no mercado do trabalho, mas segundo as funções sociais que desempenham».

Nicolas Maduro, que está ao serviço da causa de Cristo, saberá que a Igreja não acredita na via revolucionária mas na evolução bem orientada, visto que aquela «só e sempre destrói, nada constrói; só excita paixões, nunca as aplaca; só acumula ódio e ruínas e não a fraternidade e a reconciliação» (João XXIII, Pacem in Terris)?

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Nicolas Maduro, que está ao serviço da causa de Cristo, saberá que a Igreja se opõe veementemente a qualquer regime que contraponha os interesses da coletividade aos dos indivíduos e que, pelo contrário, para a Igreja, «a ordem social será tanto mais sólida, quanto mais (…) procurar modos para a sua coordenação frutuosa», já que «onde o interesse individual é violentamente suprimido, acaba substituído por um pesado sistema de controlo burocrático, que esteriliza as fontes da iniciativa e criatividade» (João Paulo II, Centesimus Annus)?

Nicolas Maduro, que está ao serviço da causa de Cristo, saberá que a Igreja, não obstante a sua opção preferencial pelos pobres, não encara toda a desigualdade como necessariamente má, posto que a própria vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, não sendo as desigualdades naturais «de modo algum obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade» (Pio XII, Benignitas et Humanitas)?

Não saberá, certamente, pois tudo aquilo que defende e põe em prática – e aqui nem sequer nos referimos aos flagrantes atropelos em matéria de direitos humanos e aos escandalosos níveis de corrupção na Venezuela – é o contrário de tudo isto. Vir agora, com o suor, as lágrimas e o sangue de milhões de venezuelanos nas mãos, dizer-se “ao serviço da causa de Cristo”, é, no mínimo, uma piada de muito mau gosto. A causa de Cristo implica dar a vida pelos outros, não dar a vida dos outros para salvar a própria pele.

Advogado