Entre os dias 26 e 29 de Janeiro últimos, teve lugar a 51ª Edição do Encontro Anual do Fórum Económico Mundial (FEM). Este ano, em vez de Davos, o Fórum foi virtual. Com menor cobertura mediática e nenhum aprés-ski, quase não pudemos testemunhar a participação de alguns líderes mundiais dos negócios e da política, muitos deles aproveitando a riqueza alheia (de contribuintes ou accionistas) para verem e serem vistos, numa das maiores feiras das vaidades do planeta. Não que daí advenha grande mal ao mundo. O que não falta, a todos os níveis, é gente que gasta, com arrogante presunção, a riqueza honestamente adquirida por terceiros, pelo que umas quantas viagens em jacto privado (mediante o pagamento das respectivas indulgências dióxido-carbónicas plenárias) não deverão ter um impacto significativo na ordem espontânea da sociedade global.

O que, sim, pode ter impacto, é o facto de muitas destas pessoas, não satisfeitas com saborear as sumptuosas iguarias servidas nos jantares de gala, com extasiar-se perante a deslumbrante paisagem dos Alpes suíços ou ensoberbecer na companhia dos seus pares, julgarem que o sucesso, que inegavelmente muitos obtiveram, os obriga moralmente a comiserar-se da sorte do mero mortal, a quem estes prazeres estão financeiramente vedados e, o que é pior, a acreditar que as suas superiores capacidades intelectuais, sociais ou humanas (tanto as reais como as imaginárias) são chamadas a resolver as grandes questões que atribulam o quotidiano das sociedades modernas. Também estiveram aqueles, e serão muitos, para quem manifestar estas preocupações não passa de um exercício de cinismo mais ou menos calculado. Uma estranha forma de vida, cujo oportunismo só pode prosperar sobre as boas intenções dos primeiros e da credulidade do público em geral.

Porventura amargurados por se terem visto privados das distracções mais mundanas que Davos proporciona, e aproveitando a falta de fotografias do evento onde dar a cara, os organizadores este ano decidiram, aproveitando a pandemia, reforçar a ideia da implementação da Agenda 2030. Uma agenda tão preenchida que, temo, nem toda a riqueza dos milionários ali reunidos poderia sufragar, na remota hipótese de eles estarem mesmo dispostos a sacrificá-la. Felizmente, tal martírio tornou-se desnecessário desde o momento em que o mundo se convenceu que a dívida pública não é para pagar. Quero dizer, ainda ninguém me explicou porque é que, se a dívida não tem de ser paga, a carga fiscal suportada pelos contribuintes na OCDE não parou de aumentar desde, pelo menos, o colapso do padrão-ouro, ou porque é que o crescimento económico das nações mais endividadas é tendencialmente menor, mas, na medida em que a um aumento de impostos sempre corresponde um aumento multiplicado da capacidade de endividamento dos governos, percebo, pelo menos, o optimismo.

E é cavalgando esse optimismo de quem nada deve (porque não é para pagar) e de quem nada teme (porque não sofre as consequências) que nos propõem um Novo Capitalismo – o Capitalismo do Stakeholder (Capitalismo da “Parte Interessada” no melhor português que se arranja) – e que nos vai fazer a todos felizes até 2030, se a Agenda proposta for implementada. Nas palavras do próprio Klaus Schwab, fundador e presidente do FEM, existem dois modelos de Capitalismo reinantes: o Capitalismo de Estado, que é o modelo de países como a China, Singapura ou o Vietname, e o Capitalismo do Accionista que, para simplificar ainda mais a caricatura que o próprio Santa Klaus de Davos não se coibiu de fazer, seria mais ou menos aquilo a que os justiceiros sociais chamam “Capitalismo Selvagem”. Obviamente, que no mundo real não existe, nem nunca existiu, nenhum capitalismo, nem selvagem nem domesticado. Capitalismo é só uma palavra que o Marx inventou para poder contrastar a sua utopia com o mundo imperfeito, incerto, incompleto e, ainda assim, interessante que inevitavelmente habitamos. Não há nenhum modelo que o possa encapsular.

O que os organizadores propõem, qual algozes de dragões, é acabar com os dois tipos de capitalismo velhos para o substituírem por um muito melhor. Ainda que, na prática, esse tipo de Novo Capitalismo não seja mais que uma espécie de velho Capitalismo de Estado com esteróides. Ou não tivessem como convidado de honra este ano, entre rasgados elogios à sua gestão económica, o Secretário-Geral Xi Jinping, Presidente da República Popular da China: a maior ditadura do mundo. Lido com atenção, este Capitalismo de “Parte Interessada” não passa de uma justificação para permitir utilizar o aparelho do Estado para alargar o espectro de privilegiados que vivem à custa da riqueza produzida empresarialmente pelos demais indivíduos – gestores, trabalhadores e, principalmente, accionistas. O acionista é o kulák moderno, aquele pequeno proprietário de terrenos agrícolas que os soviéticos culparam de todos os seus fracassos económicos enquanto lhe colectivizavam as terras, lhe confiscavam os animais e o enviavam para o GULAG.

É este intervencionismo estatal mal disfarçado, em que os frutos do capital são para distribuir não pelos seus legítimos proprietários, mas pelas “partes interessadas” (segundo o critério dos senhores de Davos), aquele que vai trazer à sociedade a prosperidade e a felicidade que, aparentemente, esta merece e aqueles garantem. Há uns anos, resumiram a Agenda 2030 num vídeo de propaganda tão infantil, que o próprio FEM se encarregou, mais tarde, de retirar. Entre o aviso esperançoso de que os Estados Unidos deixarão de ser a primeira potência mundial e a necessidade críptica de os valores que sustentam as nossas democracias serem “considerados” (o quê, não dizem), vão-nos informando que, para sermos felizes, não vamos ter propriedade, não vamos esperar por transplantes de órgãos e vamos comer menos carne. Quer dizer: vamos ter o mesmo que teve a vasta maioria dos seres humanos durante a quase totalidade do tempo que habitaram este planeta: nada. Curiosamente, a excepção a esta quase inevitável regra da condição humana, coincidiu, grosso modo, com o breve período de tempo que os Estados Unidos levam sendo a primeira potencia mundial, um período em os valores que sustentam as nossas democracias não foram “considerados”, por serem óbvios. No fundo, o Admirável Mundo Novo que nos prometem, já para 2030, não parece muito diferente do mundo velho, aquele anterior à emergência do Liberalismo, em que os poderosos detinham todo o poder político, toda a propriedade e eram os únicos que comiam uma quantidade razoável de carne. Eram também “parte interessada”. Parte interessada em toda a produção, através de dízimos, corveias e vassalagem. Depois de ver o vídeo, só me ficou a dúvida sobre a necessidade de “a humanidade” viajar a Marte (cabemos todos?). Para quê? Se vamos ser todos felizes na Terra. Mas espero que sim, espero que se possa ir até ao planeta vermelho, porque suspeito que muitos vão querer fugir do Paraíso Capitalista antes de este se converter inevitavelmente no Inferno Socialista do costume.

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