Na primeira parte desta série de artigos, vimos que qualquer banco comercial encerra em si a semente da sua destruição, já que a viabilidade do negócio depende de tratar os depósitos como empréstimos de longa duração. Na segunda, tentámos perceber porque a sociedade aceita viver sob a ameaça de falência e como a regulação não pode, por si só, resolver o problema. Na terceira aplicamos esse modelo conceptual à recente crise e na última tentaremos, finalmente, responder à pergunta que dá título a esta série de textos: estaremos perante a extinção dos bancos comerciais?

Pouco provável, dirá o leitor. No entanto, se a atividade dos bancos é 1) inerentemente frágil 2) aumenta o custo de fidelizar os clientes e 3) e exige uma enorme rentabilidade para compensar o risco, é medianamente claro que o sistema financeiro terá de procurar uma reestruturação que permita: ou o aumento da robustez; ou aumento das margens; ou a redução do custo do capital. Ou uma combinação das três coisas.

Na intervenção da FDIC na falência do SVB, que descrevemos sucintamente na segunda parte deste texto, verificou-se que 90% dos depósitos eram superiores a 250,000 dólares e, como tal, não estavam cobertos pelo seguro. Do ponto de vista legal, o FDIC não tinha a obrigação de os ressarcir, no entanto, foi isso o que fez. Similarmente, na Suíça, o SNB obrigou os accionistas do Credit Suisse a vender as acções à UBS por um preço simbólico, ao mesmo tempo que deixou os proprietários das obrigações de tipo AT1 de mãos a abanar, tudo para criar uma almofada suficientemente confortável entre o valor dos activos e a obrigação da UBS de garantir os depósitos sem que pudessem surgir dúvidas quanto à solvência da entidade que criassem um efeito bola de neve. A mesma preocupação ficou patente na operação de venda do First Republic à JP Morgan. Um dos motivos foi impedir que o contágio se alastre e todo o sistema bancário revele a sua fragilidade. O outro, o facto de muitos dos depósitos de maiores montantes não pertencerem a uma classe ociosa de aristocratas, mas a empresas que dependem deles para o normal desenvolvimento da sua actividade. O custo político e económico de o sistema financeiro não devolver integralmente todo e qualquer depósito bancário tornou-se demasiado alto para que os reguladores o possam sequer contemplar. Não é coincidência que os únicos dois casos neste século em que os reguladores financeiros impuseram prejuízos aos grandes depositantes foram a Islândia e o Chipre. Têm em comum o facto de os grandes depositantes serem quase todos estrangeiros.

A perceção de que os reguladores vão restituir todo e qualquer montante depositado no sistema bancário, pelo menos nas instituições diretamente supervisionadas, cria uma espécie de seleção adversa, que faz com que os depositantes possam deixar de se preocupar com a saúde financeira da instituição a quem deixam o seu dinheiro. A vasta maioria da população já o faz, porque o montante dos seus depósitos é bastante inferior ao patamar a partir do qual deixam de ser resgatados. Mas estes são geralmente aqueles investidores pouco informados, imunes à variação das taxas de juro e fidelizados ao seu banco de que o sistema bancário depende em grande escala para poder fazer a transformação de liquidez que canaliza poupanças para o longo prazo. O que esta ronda de resgates permite intuir é que, a partir de agora, essa possibilidade também se amplie aos grandes depositantes, geralmente bem informados, sensíveis a variações na remuneração das taxas de juro que os bancos têm pouca capacidade para fidelizar. Isto não significa que os depositantes a partir de agora passem a ignorar completamente a saúde financeira do banco onde depositam o dinheiro, da mesma forma que fazer um seguro automóvel não resulta em que as pessoas passem a chocar os carros de propósito. Mas ao sinalizar que estão dispostos a garantir todo e qualquer depósito no sistema, os reguladores estão a ser obrigados a assumir que um depósito não é um empréstimo. É uma quantidade de dinheiro que os indivíduos colocam à guarda dos bancos e não um empréstimo a longo prazo que os bancos podem utilizar para emprestar a terceiros. Se os bancos não puderem emprestar esse dinheiro resolvem o problema da sua fragilidade, mas que utilidade social lhes resta?

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De momento, os depositantes não estão dispostos a correr o risco de esperar pelo resgate e aquilo a que se assiste nos Estados Unidos é à transferência dos depósitos dos bancos regionais para os bancos nacionais. Esta informação é algo conflituosa e não de todo confirmada pelo sistema financeiro, é o que tem provocado que o preço das ações dos bancos regionais americanos se comporte alguns dias como uma montanha russa. Mais elucidativo é o facto de os bancos que o regulador reconheceu em perigo de insolvência, por corrida aos depósitos, terem sido entregues a bancos maiores, promovendo assim uma concentração dos depósitos dentro do sistema bancário para aumentar a sua robustez. No limite, o desenho financeiro do sistema que se está a configurar, com a universalização da garantia sobre os depósitos, o aumento das exigências de capital que os reguladores pretendem ver estipuladas no próximo acordo de Basileia e uma maior restrição das situações em que os bancos podem contabilizar os activos held-to-maturity, tem como corolário lógico a existência de apenas um banco depositário em todo o sistema bancário: o próprio banco central.

Num mundo em que os serviços de transferência de dinheiro se tornaram tão eficientes que qualquer pessoa pode, em questão de segundos, transferir o seu dinheiro para virtualmente qualquer lado, fica cada vez mais difícil para os bancos comerciais investirem em redes que fidelizem os clientes, o que coloca pressão sobre o negócio de pedir emprestado a taxa fixa para emprestar a variável, que está na base do modelo de negócio dos bancos comerciais. Apesar de, na apresentação dos resultados trimestrais, os banqueiros insistirem em afirmar que não estão a pensar subir as taxas de remuneração dos depósitos (pelo menos nos países com maior concentração bancária) a verdade é que nos Estados Unidos já o estão a fazer. Isto porque ali, alguns fundos monetários já estão a depositar o dinheiro diretamente na Reserva Federal, que está a remunerar esses depósitos a uma taxa anualizada de sensivelmente 5% ao abrigo do seu programa de repos. Não há dinheiro mais seguro que aquele depositado na Reserva Federal já que o dinheiro é um passivo da própria reserva. Apesar de a disponibilidade do mesmo nesta modalidade não ser exatamente imediata, é suficientemente rápida para fazer concorrência aos depósitos nos bancos comerciais. O corolário lógico de, no limite, apenas existir um banco depositário fica, também por esta via, mais próximo. A questão é, se todo o dinheiro for depositado no banco central, como é que se canaliza para o investimento? Os Estados Unidos, que são a vanguarda do sistema financeiro e aquele que, com maior ou menor precisão, todos os demais tentam emular, têm, aparentemente, uma resposta.

Nos Estados Unidos existem vários fundos especializados em conceder crédito. Estes fundos são financiados por capitais próprios e, ainda que possam ter uma componente de alavancagem, isto é, contraiam dívida para poder emprestar mais dinheiro que aquele que os investidores lhe deram, muitos não a têm e os que sim têm-na em montantes geralmente moderados, ao contrario do negócio de financiar empréstimos com depósitos que está alavancado e em múltiplos de 10 vezes o montante original. Os fundos de investimento têm a vantagem de, no caso de os empréstimos correrem mal, a perda ser suportada pelos partícipes que aceitaram conscientemente correr esse risco.

Em 1933, um grupo de economistas da Escola de Chicago propôs um plano para acabar com as grandes depressões cíclicas, como a Grande Depressão de que a economia americana estava ainda a sofrer as consequências. Esse plano passava pela obrigatoriedade de os bancos deterem 100% do dinheiro depositado à vista em reservas para impedir que este fosse utilizado para financiar as expansões do crédito que estavam na origem das bolhas financeiras. Os investimentos teriam de passar a ser financiados exclusivamente por capital metido em trusts que não seriam muito diferentes dos fundos de crédito que referi acima. Com a passagem do tempo e o retorno da confiança das pessoas no sistema bancário, esse plano foi arquivado, sendo apenas parcialmente aplicado pela separação entre bancos comerciais e bancos de investimento em 1935, que prescrevia severas restrições a que estes últimos pudessem captar depósitos (daí que, como escrevi no início, este problema de fragilidade geralmente não se lhes aplique).

Não se pense, no entanto, que esta ideia resolveria todos os problemas do sistema financeiro. Como qualquer planificação, acarretaria novos problemas impossíveis de vislumbrar antes de o sistema estar em prática. Mas o narrow banking, que é como coloquialmente se chama esta ideia, parece ser o corolário lógico de um sistema financeiro em que a proteção dos depósitos não esteja hiperregulada. Os bancos centrais, como seria de esperar, não estão particularmente entusiasmados com a ideia. Sendo por natureza conservadores, não estão disponíveis para acabar com o sistema que de alguma forma moldaram e conhecem. A questão não passa por um grupo de sábios redesenhar e planificar todo o sistema, essa é a receita para o fracasso. Mesmo sendo imperfeito, o sistema bancário emergiu de forma espontânea nas sociedades para resolver problemas concretos dos indivíduos. Um sistema planificado, racional e centralizado não é sinónimo de perfeição e pode mesmo ser um empecilho a que verdadeiras soluções apareçam. Um narrow banking de banco central, com o monopólio dos depósitos bancários, seria uma tentação demasiado grande para os políticos não utilizarem na construção de uma sociedade perfeita, dessas que acabam sempre mal. Uma sociedade que entregaria créditos aos seus favoritos ou aos cidadãos bem-comportados, que não emitam dióxido de carbono (exceto para respirar, presumo), não comam carne, não fumem, respeitem a diversidade de género, se vacinem contra o último vírus da moda, etc. etc. e inversamente restrinjam o acesso ao seu dinheiro de todos aqueles pecadores que façam o contrário. Uma grande dose de populismo e soluções para salvar o mundo é tudo de que necessitam.

Os sistemas financeiros já enfrentaram problemas tão ou mais complexos como a última crise e, como em qualquer sector de atividade, à vezes chega o dia em que determinadas estruturas de produção se tornam obsoletas. O problema não seria a extinção dos bancos comerciais se, de facto, são substituídos por empresas ou negócios que resolvam ou reduzam o problema da fragilidade inerente ao sistema financeiro. O problema é aproveitar que o problema existe para tentar alterar o sistema por decreto, já que este, apesar de ser fruto da ação humana, não o é do seu desígnio.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.