Quem se lembra de passear pela Nazaré há trinta ou quarenta anos atrás e de ver as placas que umas senhoras seguravam dizendo “quartos, chambres, rooms, zimmers”? Era o alojamento local da altura, ainda sem suporte legal e sem a massificação do turismo que a livre circulação de Schengen trouxe em 1995.
Foi assim que funcionou até 2008, quando foi criada a figura jurídica do alojamento local, tendo depois, em 2014, sido sentida a necessidade de criar um regime jurídico próprio. Nessa altura havia já cerca de 17 mil estabelecimentos de hospedagem registados em Portugal.
Estava reconhecido o impacto económico do fenómeno que permitia que alguns milhares de famílias usassem os quartos de que não precisavam para compor o salário no fim do mês, acolhendo turistas nacionais e estrangeiros que viam nesta forma de alojamento uma solução mais em conta e mais autêntica para viajar.
Os decretos-lei promulgados nesse ano (15/2014 e 128/2014) e a revisão do ano seguinte (63/2015) referiam pretender “simplificar e liberalizar procedimentos”. E assim era. Uma “mera comunicação prévia” passava a ser suficiente para se iniciar a atividade e os estabelecimentos deveriam manter condições de “segurança, higiene e saúde pública”. Os edifícios teriam de ter água quente e os quartos dispor de janela. Até aqui tudo bem. Cresça a economia!
Calma, caro leitor, estamos em Portugal. Quatro anos de estado de graça e logo o legislador considerou que a coisa estava a correr demasiado bem. Nova lei (62/2018) e os municípios passavam a ter competências alargadas, nomeadamente “o poder de regular a instalação de estabelecimentos de AL com vista a preservar a realidade social dos bairros e lugares”.
Aqui impõe-se um parêntesis. No caso particular de Lisboa e do Porto, a “realidade social” dos centros urbanos, prévia ao alojamento local, era constituída por dezenas de prédios devolutos, centenas de fachadas a cair de podres e milhares de casas vazias, vítimas de uma lei do arrendamento anacrónica da qual potenciais senhorios fugiam a sete pés. Em todos os restantes casos, o crescimento turístico não era tal que permitisse a “gentrificação”, ou perda de identidade local que esta nova lei se propunha combater.
Mas a fúria legislativa e proibicionista estava ainda apenas a começar.
Em novembro de 2020, o turismo em geral e o alojamento local em particular viviam o pior momento da sua história, castigados pela pandemia de covid. Ignorando a regra de cavalheiro de que não se bate em quem já está no chão, veio desta vez o governo com uma portaria (262/2020) definir “condições mínimas de funcionamento”.
A alteração legislativa ficou desde logo manchada por um conflito de interesses que oportunamente alguns jornalistas tiveram a lucidez de denunciar. O ministro que assinava a lei era casado com a diretora-geral da Associação da Hotelaria de Portugal, instituição que nunca escondeu pretender combater a concorrência que o alojamento local lhe fazia e faz.
Mas em que consistiu então esta alteração? Entre outras coisas de somenos importância, esta portaria definiu a área mínima que os quartos devem ter. Considerou o então senhor ministro da Economia que um quarto não era digno para alojar um casal se não tivesse pelo menos nove metros quadrados. Que não era digno para alojar um grupo de três amigos se não tivesse pelo menos doze. A portaria define ainda um rácio de seis utentes por casa de banho no caso dos hostels. Uma aberração legislativa que não tem paralelo em toda a Europa e que nem sequer é cumprida nos estabelecimentos geridos pelo próprio Estado.
O resultado prático desta alteração? Quem puder pagar quartos maiores e mais luxuosos fá-lo-á. Os restantes ficam impedidos de gozar férias. Ou então podem acampar, em tendas com dois metros quadrados.
Não é nova esta bizarra mania de que cabe aos governantes zelar pela dignidade dos negócios, seja lá o que for que entendam por dignidade.
Já em 2008, pretendia a Câmara da Nazaré proibir as tabuletas das já referidas senhoras com vista a “conferir dignidade ao alojamento particular”. Um fetiche com a “dignidade” que não se entende, a não ser pela superioridade moral que esta gente acredita ter sobre a população que decide em liberdade que serviços vender e que serviços comprar.
Bem esteve a Iniciativa Liberal, que se dispôs, logo que o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a atual lei não permite alojamento local e habitação no mesmo prédio, a resolver o problema. Alterando um único artigo na lei. Já o ministro da Habitação anunciou mais um grupo de trabalho para discutir a questão.
Mantém-se em 2022 a mesma ânsia controladora e os mesmos erros de palmatória do passado.
Primeiro foi uma coligação negativa em Lisboa a proibir os novos registos em praticamente toda a cidade. Nos três meses que se seguiram, antes da entrada em vigor da lei, o número de registos subiu quatrocentos porcento (400%)!
Agora é a vez dos deputados socialistas, comunistas e bloquistas da Assembleia Municipal do Porto pretenderem controlar o crescimento do alojamento local. Acreditam, dizem eles, que os proprietários de imóveis vão, no dia a seguir, disponibilizar os mesmos em modalidades de renda acessível. Alguém andou a faltar às aulas de economia…
Trata-se, mais uma vez, do Estado a querer responsabilizar os cidadãos pela sua própria incapacidade para resolver os problemas de urbanismo e de mobilidade entre os centros urbanos e as periferias.
É velha esta teoria política de que as economias se moldam como plasticina, esquecendo que quem compra e quem vende produtos e serviços são seres sencientes e com vontade própria. E é por isso que estas boas intenções legislativas resultam muitas vezes no inverso do simétrico daquilo a que se propõem.
A questão é que de boas intenções está o inferno cheio. E o país farto.