Ninguém se aborreça ou perca a boa disposição, isto sou eu na Travessa do Fala-Só, aqui ao lado de casa, um dos poucos lugares onde posso falar abertamente, sem obrigação de cortesias ou receio de pisar os calos seja de quem for.
Estava para começar por um assunto que há muito me intriga, a inexplicável “pobreza” dos multimilionários portugueses. Não se vá, porém, julgar que desdenho do montante da sua pecúnia, embora se fosse minha intenção fazer comparações com o que há de fortunas nos mais países da U.E., provavelmente também aí ficariam (ficaríamos?) na cauda.
Como me falta conhecimento das ciências que, possivelmente, explicam as causas de tal situação, escritor que sou poderia deixar-me tentar pela fantasia, e cobrir com esse clássico véu queirosiano o que, numa ou noutra altura, de despropositada ironia me ocorre. Como, por exemplo, perguntar-me se essa relativa modéstia não será reflexo de uma antiga e cautelosa mentalidade no negócio de secos e molhados, ou da dificuldade, que noutros tempos havia, para conseguir o alvará da venda ao balcão de vinho a copo.
Seja como for, indo por esse lado arriscava-me a parecer que caía no sarcasmo fácil do invejoso ressabiado, qualificativo que não mereço, pois entre o pouco que invejo não consta o dinheiro. O meu espanto causa-o a aparente facilidade com que neste tempo, em Portugal, algumas vezes como por obra e graça do Espírito Santo, qualquer badameco ascende ao escalão milionário.
Escrevi ascende e logo, mistérios do raciocínio, me saltou o pensamento dos que chegam à riqueza, para a multidão dos que por mais que se esforcem, esgadunhem, sofram, mintam, se humilhem, parecem condenados, uns à miséria, outros a um destino de fingimento e aparências, sentindo sempre em redor do pescoço a corda, que mesmo frouxa é ameaça pendente.
Há gerações sem conta que assim se mantém a vida no nosso Portugal, onde com tapete vermelho, vénia e rapapés, a uns tantos é apontado o ascensor-expresso, para que nele subam aos andares mais altos. Uma mão-cheia de sortudos ainda é capaz de chegar ao segundo ou terceiro, mas os restantes, quando passam na rua vêem o ascensor parado no rés-do-chão, às vezes com um papelucho onde se lê “Avariado”, nele uma seta a indicar as escadas.
Força nas pernas não adianta, por essas escadas sobe quem tem padrinho que o abençoe, ou compincha que lhe mostre as mãos que deve untar. Mesmo assim, depressa também não irá, e uma vez chegado ao destino vai descobrir que o ambiente confirma a verdade no ditado, de que não há paz quando escasseiam os ossos e são muitos os cães.
É triste, é trágico, dá pena, pois milionários ou remediados, pobres, mendigos, deixados por conta, para todos se deseja uma pátria de que se orgulhem, onde se sintam iguais, protegidos pela lei, onde não haja ascensores nem escadas para privilegiados, e cada um suba conforme as suas qualidades e cumprindo o seu destino.
Porque assim sinto e penso, agora com as eleições à porta mais me entristecem as parangonas nos media e a verborreia dos políticos, o cinismo das suas juras a demonstrar a pouca conta em que têm o cidadão, tomando-o por débil mental, repetindo promessas que, em falta de vergonha e desprezo por quem as ouve, não desmerecem das que garantem os bufarinheiros.
Fechadas as urnas, dos novos mandantes ouviremos a lengalenga de planos futuros, juramentos solenes, certezas para um amanhã soalheiro sempre adiado. Mixórdia que alguma virtude deve ter, quanto mais não seja que a da banha de cobra, pois a vendem há meio século e continua a haver quem lhe reconheça virtudes.
No futuro próximo nada mudará. E desculpem a triste franqueza, mas das “gerações mais bem preparadas de sempre” também não espero avanços, quanto mais não seja senão porque lhes falta muito do que nos países verdadeiramente desenvolvidos é considerado o currículo mínimo indispensável. Além de que nesses países o ascensor funciona de modo igual para ricos, pobres, remediados, e subir nele não depende da família ou da cunha, somente do talento e da qualidade.
Digo-o com pena, mas sabemo-lo todos, vai demorar a que chegue a geração realmente preparada para consolidar um país moderno, desenvolvido, exigente na qualidade de vida e do ensino, com garra bastante para pôr fim ao desleixo e à corrupção. Que não aceite uma Justiça que não é somente de casta, mas tem um funcionamento que envergonha e assusta.
De modo que os filhos dos bebés que hoje nascerem irão encontrar muito do mesmo, mas talvez os filhos desses cresçam de olhos abertos e recusem a bandalheira. Que não caiam em sonhos, não aceitem o deixa-andar, a esperteza, a pouca-vergonha, não esperem favores nem milagres de Fátima, metam mãos à obra de mangas arregaçadas, exijam que Portugal deixe de ser a quintarola de alguns senhores, e suba à categoria de nação próspera, democrática e civilizada.