Deve ter sido no princípio do mês ou um pouco antes que no jornal me chamou a atenção o título a anunciar que o ministro da Economia, refutando os boatos em contrário, afirmava que no Natal haveria bacalhau.

Como não li a notícia, só o cabeçalho, nem estou ao corrente das circunstâncias que podem ter causado a possibilidade de haver menos fiel amigo na Consoada, especulei que talvez fosse por atraso de pagamento aos fornecedores, escassez do peixe, ou frieza nas relações diplomáticas, já que com três ou quatro outras, a democracia norueguesa deita um olhar vesgo aos que, em vez de amealharem e fazer render o que lhes emprestam, gastam-no em copos e bandalheira de saias.

Felizmente, poucos dias depois, num tom de compreensível triunfo, o ministro fazia saber que na noite de Natal haveria bacalhau em todas as mesas, e foi aí que involuntariamente destravei o mau humor, mais que irritado com a presunção do generalizar que “em todas as mesas” da Consoada haveria bacalhau, quando sabemos que muitos dos que se sentarem a cear encherão o prato com batatas e grelos, enquanto o bacalhau será nele uma miragem igual à da água no deserto.

Todavia, porque eu próprio dei conta de que me deixava arrastar pelo azedume, ou nesta quadra se torna mais efectivo o versículo “Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens”, concedi que seria sensato evitar a intransigência, não fazer finca-pé nos meus cavalos-de-batalha e, pelo menos desta vez, discordar de Marx, compreender que nem todos os abastados são feras, porque também os há que, nascidos em berço de ouro, nem por sombras imaginam o que seja uma vida de miséria.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Partindo desse considerando, tentei recordar exemplos com que pudesse sustentá-lo, propósito que se mostrou mais complicado do que o que esperava, pois numa vida longa como a minha, feita de más estradas, bons atalhos, curvas perigosas, descidas e subidas, umas a pique as outras com lentidões de caracol, a certa altura torna-se tão complicada a escolha que a única saída é cortar o nó górdio.

Assim faço, pondo de lado a lembrança de momentos felizes e infelizes, revivendo horas de boa conversa, sentindo saudade das ocasiões perdidas, perdoando culpas minhas e alheias, para no fim tudo reduzir a três pequenos exemplos, caso contrário, e houvesse paciência de ambas as partes, ainda amanhã aqui estaríamos.

Começo por António Alçada Baptista (1927-2008), homem bom, inteligente, carinhoso, amigo do peito. De 1968 a 1983, nas vezes sem conta que então estive em Lisboa, era ele o primeiro a quem telefonava, seguíamos um ritual de almoços e jantares, horas de conversa, eu a absorver o que ele contava da vida de Lisboa, os mexericos da sociedade, os da política, as traições e os favores, as rasteiras, a incrível pulhice de alguma gente de fama.

Sendo domingo íamos sem falta almoçar à Mimi do Parque Mayer, restaurante minúsculo, modesto, mas de boa mesa e com a vantagem de ouvir a Mimi contar as extravagâncias de gente de renome que ali aparecia, menos para comer do que para se dar um cherinho de canalhice.

Foi numa dessas ocasiões que demos por ambos a falar das nossas infâncias, a dele na Covilhã, a minha em Gaia e Trás-os-Montes. Diferenças eram muitas, ele a crescer na burguesia abastada e proprietária, eu filho de um guarda-fiscal, neto doutro e de um sapateiro de aldeia.

Curiosamente, porém, quando comparávamos as situações da nossa criação, concluíamos que a minha tinha sido de uma liberdade que ele desconhecera, porque, sujeito a imposições de casta, à obrigação de se comportar como menino bem, de obedecer aos ditames, seguir as regras, não falhar os rituais da religião, aceitar sem resmungos os mandamentos dos mais velhos.

Por vezes, dando-me ideia de que essas situações o tinham magoado, de súbito recordava ele um ou outro caso de desigualdade social que já então o envergonhava, como a bruteza e o desdém com que os homens da sua família tratavam os jornaleiros que lhes cuidavam da lavoura. Ou a escravatura das criadas, que, sem queixa nem descanso, fosse dia ou noite, trabalhavam quando lho mandavam, comiam os restos, vestiam a roupa que as senhoras deitavam fora.

Agora um aparte, pois pode haver por aí um ou outro jovem que ignora o que era a lista telefónica: um calhamaço com centenas de páginas, onde em letra miudinha se listava o nome, a morada e o número de telefone do assinante. Saudoso tempo.

Havia uma lista para Lisboa, outra para o Porto, uma para cada província. Eram renovadas quase todos os anos, mas fora o uso que tinham, e dada a qualidade do papel, em muitas casas eram as folhas um agradável substituto para as folhas de jornal, correntemente utilizadas então como papel higiénico.

Voltando ao Alçada. Contou ele que teria então treze ou quatorze e ainda vivia na Covilhã quando uma tarde bateram à porta. Foi abrir e ao mesmo tempo ouviu que de dentro de casa a mãe perguntava quem era.

– Vieram trazer a nova lista dos telefones.

– Está bem. Põe na mesa.

– E o que se faz à velha?

– Dá-se a um pobre.

O anunciado segundo exemplo vou buscá-lo à situação que me foi contada por alguém que a ouviu do próprio, jovem professor numa escola secundária do Massachusetts, não uma qualquer, mas dessas que os ricos escolhem a dedo e pagam propinas que tocam o absurdo.

Logo nos primeiros meses o professor deu-se conta de que, fora música, baseball e séries da TV, a ignorância dos miúdos era realmente de assustar. Consciência da história, da política, das outras partes do mundo, da realidade social? Zero. Ora como de alguma maneira teria de começar, mandou ele à rapaziada que fizessem uma redacção sobre uma família pobre, e dentre os resultados sobressaía este de uma miúda de catorze anos:

“Uma família pobre – Era uma família pobre; o pai era pobre; a mãe era pobre; as crianças eram pobres; o mordomo era pobre; a cozinheira era pobre; as três criadas eram pobres; o jardineiro era pobre; o chofer era pobre; o carro era velho; não tinham piscina nem tinham cães; uma família realmente pobre.”

Termino com um caso de Cecil B. DeMille (1881-1959) gigante do cinema de Hollywood, homem de grandes sucessos, famoso pela rudeza das maneiras e carácter autoritário.

Em meados dos anos 30, a América a sofrer a maior depressão económica da sua história, concebeu ele a ideia de um filme em que tudo era luxo, prosperidade e grandeza, os personagens vivendo num ambiente que só se poderia comparar ao dos fabulosos marajás da Índia.

Reuniu então os realizadores, os actores, os técnicos e o mais pessoal que participaria no filme para ouvir que ideia faziam do projecto. Reunião aliás desnecessária, porque ditatorial como era não admitia oposições. Deste vez, porém, primeiro um, depois outro, finalmente todos os presentes discordaram do projecto, deixando o patrão sem fala e à beira da síncope.

Houve um momento de silêncio, finalmente um dos realizadores explicou que, dado o que acontecia no país, esse tipo de filme seria muito mal recebido. “Aliás, concluiu ele, ninguém vive assim, como o senhor quer o filme. Uma espécie de castelo com salas e salões, dezenas de quartos, pessoal e mais pessoal, piscinas, lagos…”

Conta quem assistiu que se fez um silêncio impressionante, as dezenas de presentes como que tinham deixado de respirar, o que não era para menos, pois ir contra a vontade de Cecil B. DeMille, além de perder o emprego significava ser ostracizado de Hollywood para todo o sempre.

A tensão estava a ficar insuportável, quando ao contrário da gritaria que temiam se ouviu a voz do patrão, quase um sussurro de desculpa: “Ninguém vive assim? Mas eu vivo assim!”

Goste-se ou não há algumas razões para desculpar o comportamento dos ricos, porque de facto eles às vezes não sabem.