Nos últimos dias foi completamente impossível ver as notícias e navegar pela internet sem ser confrontada com as imagens perturbadoras da morte por autoimolação de Aaron Bushnell, um militar da Força Aérea dos Estados Unidos, como forma de protesto político contra Israel e o envolvimento dos Estados Unidos no conflito em Gaza. Ainda mais perturbador, contudo, é a cobertura e a reação generalizada a este ato barbárico. Variadas figuras políticas, organizações e meios de comunicação internacionais descreveram o ato como heróico, um sinal corajoso pela justiça, um sacrifício da mais alta ordem. Confesso que, correndo o risco de parecer ingénua em face dos dias que vivemos, o choque se assolou de mim.

O conflito que deu azo a este ato já fez correr muita tinta de méritos variados. Não pretendo usar o presente texto para o discutir a fundo. Deixo esse trabalho opcional para o leitor, se o quiser fazer. Também, para o tema que quero abordar, pode dizer-se que é quase irrelevante. Porque, qualquer que seja o motivo do ativismo (se é que ainda se pode chamar-lhe isso) há limites que não se podem ultrapassar.

Gostamos de pensar que vivemos numa sociedade evoluída, pautada por avanços tecnológicos e, acima de tudo, por padrões de moralidade com uma tendência ascendente, pelo menos em relação ao passado. Mas o que se pode dizer de uma sociedade que olha para a aniquilação excruciante de um dos seus e encontra para ela justificação suficiente noutra catástrofe? Quando se tornou louvável combater fogo com fogo?

É um ato de extrema violência, de terrorismo até, se se tiver coragem de dizer a temida palavra, quando uma pessoa se incendeia perante o olhar do mundo. Aaron Bushnell continua a duvidosa “tradição” das imolações por motivos políticos que ganhou força com Thích Quảng Đức em 1963 e a célebre fotografia do monge em chamas que correu o mundo. Este evento deu origem a muitos copycats, variando apenas o motivo do protesto. Ora, argumento que a mudança que é inspirada por depravação moral anula a intenção da mesma. Um ato de horror contra o suposto agressor transforma o indivíduo ativista doente em ofensor; ele transforma-se naquilo contra o que protesta.

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O mais detestável é ainda o aproveitamento egoísta de organizações daquilo que só pode ser uma manifestação de um estado de profundo sofrimento pessoal e a tentativa de o transformar num estandarte da causa. Qualquer argumento de uma natureza que tente justificar esta conduta com as palavras e o manifesto do “mártir” só pode ser ou equivocado, ou mal-intencionado. As últimas considerações de alguém que toma a drástica decisão de se aniquilar de uma das formas mais dolorosas que existe não podem refletir um bom exemplo de ponderações sãs. E toda e qualquer organização, pessoa ou organismo que o afirme presta um enorme desserviço ao indivíduo em questão, e pior, à humanidade em geral.

Ainda mais preocupante é o impacto que a máquina de propaganda de um ativismo pervertido tem em mentes impressionáveis e fragilizadas pelo estado da atualidade. A mensagem implícita no louvor de um suicídio em nome de uma causa e a promessa de imortalização por esta via, não pode ser outra senão o incentivo da repetição do mesmo. Esta realidade é eco de características de movimentos terroristas e religiosos que, com razão, têm sido criticados por esse mesmo motivo. Então, quem decide quando um ativismo que propele os seus militantes para a morte, de forma direta ou indireta, deve ser designado de terrorismo?

Em última análise, um dos aspetos mais tristes de situações como estas é a sua derradeira futilidade. Sacrificar a vida na esperança de influenciar uma situação que está completamente fora do controlo do indivíduo só pode ser uma tentativa em vão. Uma tentativa com um desproporcional balanço de custo-benefício. Por muito que se queira acreditar no impacto de atos drásticos, a história tem provado vezes sem conta que o seu peso é mínimo na melhor das hipóteses, e nulo na maioria das vezes. O mundo continua a girar no sentido que os poderes maiores determinam, não importa o quão grande o sacrifício. É um sinal de sabedoria, e não de pessimismo inerente, aceitar este facto incontestável. Assim, pode direcionar-se o esforço para vias de ativismo mais sustentáveis e perseverantes, que pela natureza do efeito do tempo, da “água mole em pedra dura”, têm uma maior probabilidade de serem bem-sucedidas.

Num mundo em chamas, a resposta não pode ser deixar-se arder com ele. O maior ato de revolução é encontrar um caminho por entre elas.