Um camelo é um cavalo desenhado por um comité. A frase, normalmente atribuída a Sir Alec Issigonis, responsável pelo desenho do icónico Mini, resume o problema de consensuar decisões. Foi a sensação com que fiquei depois de ler uma espécie de manifesto de repúdio ao partido Chega autorizado, talvez autorado, por um número significativo de jovens intelectuais (no melhor sentido da palavra) liberais e conservadores. O meu veredicto é que as partes são melhores que o todo. Tentaram produzir um corcel e saiu-lhes um ungulado artiodáctilo. Cada um dos subscritores deve ter razões de peso para se manifestar. Mas em vez de criar lugar para cada um criticar, resolveram criar uma crítica de lugar-comum ou, para ser mais correcto, revigorar uma data deles, daqueles que normalmente ouvimos a jovens trotskistas e velhos bolcheviques por deformação e socialistas do partido do regime por oportunismo.
Por exemplo, lamentar a “recente deriva nacionalista, identitária e tribal” que é tão recente como os aspiradores eléctricos. Os eleitores do Chega não aspiram a nada recente, desejam um retorno ao grande consenso social do pós-guerra. Ao contrário do que sucedeu depois da I Grande Guerra, quando os impérios derrotados foram retalhados de acordo com as suas fronteiras históricas, sem grande preocupação em perceber quem é que vivia onde (até porque na era liberal isso não importava), em 1945 as fronteiras mantiveram-se praticamente intactas e foram as pessoas que foram deportadas em massa para os seus países “de origem”, para criar a tal realidade nacionalista identitária (mas pacífica) que permitiu pôr em marcha os grandes programas sociais do Estado. É uma aspiração irrealizável, a emigração do Sul para o Norte da Europa começou imediatamente com a necessidade de reconstrução, mas não é uma deriva recente, pelo contrário, é um estado de coisas que, até há umas décadas, as pessoas davam por garantido. Querer insinuar que “menosprezam as regras democráticas, estigmatizam etnias ou credos, acicatam divisionismos, normalizam linguagem insultuosa, agitam fantasmas históricos, degradam as instituições” é fazer o trabalho sujo do agitprop de esquerda. No fundo, o grande temor dos nossos liberais-conservadores é saber que o Chega é mais conservador que eles, simplesmente porque não tenta parecer moderno.
Mas se na vertente conservadora era complicado meter uma farpa num partido que é muito mais conservador que os manifestantes, não deveria ser complicado meter várias farpas na vertente liberal, já que os signatários (pelo menos os que eu conheço) possuem credenciais liberais que pouca gente reconhecerá ao Chega. Só que mesmo aí, parece que o grande pecado do partido é “confundir o espaço não-socialista”, como se este de verdade existisse em Portugal. Aqui em Espanha, o professor Juan Ramón Rallo, apesar de não ser apoiante do VOX, reconheceu com pesar que era o partido com o programa mais liberal nas últimas eleições. Assim que resolvi consultar o programa do Chega e descobri, para além de várias considerações filosóficas a enaltecer o Liberalismo, que defendem, na parte mais pragmática, “transitoriamente e durante um período de adaptação – que deverá ser gradual mas rápido – (…), o princípio geral a ser seguido pelo Estado deverá ser o de subsidiar o utilizador dos serviços, jamais a instituição que os presta (Escolas, Hospitais, Segurança Social…)”. Quer dizer: o cheque-educação, cheque-saúde, etc. não são exatamente o sonho molhado de um liberal, mas, dado o pântano socialista em que o país está atolado, são um bom caminho para sair do mesmo. Reparem que nem a Iniciativa Liberal se atreveu a defender isto com claridade, para não falar de PSD e CDS para quem estas medidas são um tabu. Percebo que o espaço não-socialista ande confundido, este manifesto é prova disso mesmo. Não só perdem o espaço conservador para o Chega, como se arriscam a perder o liberal.