O recente estudo intitulado “Processos de Especial Complexidade”, da autoria do Gabinete de Apoio aos Magistrados Judiciais, elenca dados sobre a duração das fases de inquérito, instrução e julgamento, com conclusões que justificam que se inicie um debate alargado entre todos os intervenientes, estejam os mesmos do lado em que estiverem.
Uma delas é, desde logo, o facto de se apurar que, dos cinquenta e sete processos que ainda não transitaram em julgado (ou seja, em que a decisão não se tornou ainda definitiva), há cerca de dezasseis que decorrem há mais de oito anos e outros cinco que decorrem há mais de quinze.
Quando o teor do relatório se tornou público, o foco da discussão centrou-se sobretudo no facto de, no mesmo, se dizer que, “na totalidade dos processos analisados, 77% têm uma fase de investigação superior à fase de julgamento”.
Isso é relevante, de facto, mas para ser sincero, é normal que, nos processos em que se investigue criminalidade altamente complexa, a fase de inquérito (que, muitas vezes, envolve cartas rogatórias para o estrangeiro, ou perícias contabilísticas e financeiras) tenda a durar mais tempo que a do julgamento.
Claro que há situações francamente exageradas, como se verifica nos quatro processos identificados no relatório, em que se dá nota que a fase de investigação durou mais de uma década.
Trata-se de um atraso intolerável e importa, sem dúvida, tomar medidas para que isso não volte a repetir-se, sobretudo quando estão em causa os direitos das pessoas que estão a ser investigadas, mas também os das vítimas, que podem acabar por se ver confrontadas com o risco de prescrição.
Mas o que sai fora do normal não é tanto verificar-se que, em dois terços dos processos analisados, o julgamento durou menos que o inquérito, mas sim que, num terço do total, ocorreu o inverso.
Mas independentemente disso, há toda uma dimensão muito relevante que o estudo pouco ou nada aprofundou, e que se encontra relacionada com a fase pós-julgamento, ou seja, quando se avança para os recursos da decisão judicial, seja diante do Tribunal da Relação, diante do Supremo Tribunal de Justiça ou até diante do Tribunal Constitucional.
Com efeito, sem prejuízo de concluir que pela verificação de vários atrasos, o estudo ainda assim nota que, dos vários processos que foram sendo analisados, há pelo menos cinquenta e sete que ainda nem sequer transitaram em julgado, ou seja, em que a decisão ainda não se tornou definitiva.
Mas então, se assim é, o atraso total acabará por ser ainda maior.
O estudo, contudo, não entra em detalhes quanto a isso, nem se preocupa em oferecer soluções para tais atrasos.
Numa das situações, por exemplo, refere-se que a fase de julgamento teve uma duração de duzentos e cinquenta e nove dias. Mas depois, acrescenta-se que a fase de recurso acabou ser ainda maior, durando trezentos e dezanove dias. Numa outra situação, o julgamento durou cento e dezanove dias, enquanto a fase de recursos se arrastou durante duzentos e trinta dias, ou seja, quase o dobro.
Mas mais: há pelo menos um caso em que, depois de proferida a sentença, o processo demorou duzentos e cinquenta e quatro dias só para subir ao Tribunal da Relação. Falo só da subida, a decisão ainda não tinha sido sequer tomada.
Numa outra situação, essa mesma subida durou cerca de dez meses e, uma vez chegado o processo ao Tribunal da Relação, o acórdão só viria a ser proferido vinte e um meses depois.
Quais as razões, já que o relatório não o explica, para estes atrasos? Uma coisa é dizer-se que há atrasos na investigação ou nos julgamentos. E quanto a isso, como já disse, é importante que se compreenda o que os justifica, para os poder combater. Mas porque razão é que, tendo já havido uma decisão judicial, existe tanta demora para que os tribunais superiores a confirmem ou não?
Para encontrar uma resposta a esta questão, importa que se perceba como se processa a fase de recurso.
Regra geral, as partes dispõem de trinta dias para recorrer. Nos processos de maior complexidade, esse prazo prolonga-se por mais trinta dias, embora seja possível ao tribunal conceder ainda mais prazo.
Depois, temos as respostas aos recursos. À partida, quem responde deve ter a possibilidade de o fazer no mesmo prazo do recorrente, pelo que, voltando ao exemplo dos processos de excecional complexidade, terá de se aguardar à partida, pelo menos, mais sessenta dias.
Já vamos em pelo menos quatro meses, portanto, só para que uma parte recorra e outra lhe responda.
Com duas nuances adicionais: em primeiro lugar, o prazo para responder ao recurso não começa logo a contar no dia em que o recorrente o apresente, mas sim a partir do momento em que se profira um despacho que o admita (o que pode não suceder imediatamente). Em segundo lugar, os prazos suspendem-se, em regra, durante as férias judiciais, o que implica que se, pelo meio, se entrar no período de verão, automaticamente se dará mais um atraso de cerca de mês e meio.
Concluída essa fase, o processo sobe então para o Tribunal da Relação.
E quando digo sobe, quero com isso dizer que sobe mesmo. Fisicamente. Vêm à memória aquelas reportagens jornalísticas com filmagens de caixas de processos a serem carregadas para o interior de veículos de transporte, para depois seguirem em viagem para o tribunal de segunda instância. Naqueles casos em que haja trinta, cinquenta ou até cem volumes (já para não falar nos apensos, que podem atingir as centenas), chega até a ser habitual as caixas serem transportadas em veículos pesados.
Infelizmente, de facto, nem todos os processos se encontram digitalizados. Certo sendo que mesmo quando já o estejam, ainda assim a versão impressa em papel, guarda em caixotes, não deixa de ser também ela carregada e transportada.
É neste lapso de tempo de subida que se verificam os maiores atrasos. Como disse acima, o estudo sobre “Processos de Especial Complexidade” dá nota de um caso em que só a subida durou cerca de dez meses. E há vários casos em que se perdeu mais tempo na subida do processo do que na tomada de uma decisão pelo tribunal superior. Não se percebe bem porquê.
Acresce que mesmo depois de todas essas vicissitudes, não há propriamente um prazo fixado na lei para que a decisão seja tomada. Nem sequer um prazo indicativo. Tudo depende da sua complexidade, da sua extensão, etc.
Mas enfim, chegado o processo à Relação, o primeiro passo é dar vista ao Ministério Público para “colher o seu visto” ou se, se assim o entender, proferir o seu parecer quanto ao mérito do recurso que tenha sido interposto.
Depois, se tiver sido proferido parecer, são notificados os demais sujeitos processuais do mesmo para responder, se quiserem. Dez dias, que se suspendem durante férias judiciais, se as houver.
Concluída essa formalidade inicial, o processo é então concluso ao relator, para o chamado “exame preliminar”. E não se encontrando reunidas as condições para proferir, desde logo, uma decisão sumária (por exemplo, quando não seja de rejeitar liminarmente o recurso), o relator elabora então um projeto de acórdão, levando-o a visto aos demais juízes e, submetendo-se o mesmo a votos e, concordando todos com a versão final, é de seguida afixada uma data para sua publicação, dentro dos quinze dias seguintes.
É então, finalmente, conhecido o acórdão do Tribunal da Relação, que confirma a decisão de primeira instância ou a altera. Em alguns casos, pode mesmo chegar-se ao ponto de a anular, ordenando-se a repetição de todo o julgamento ou de parte dele, consoante as situações.
A partir daí, de duas uma: ou o acórdão admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ou então isso não é possível.
Se o recurso para o Supremo for admissível, inicia-se um novo percurso do processo físico, sendo os volumes uma vez mais transportados em caixas para as instalações desse tribunal superior.
E depois, feita a subida, novamente é dada a palavra ao Ministério Público para oferecer, querendo, o seu ponto de vista, até que se profira, finalmente, um acórdão.
É comum transmitir-se a ideia de que, uma vez confirmada na Relação a decisão de primeira instância, não há mais recursos. De facto, em situações em que, por exemplo, a pena confirmada pelo Tribunal da Relação seja inferior a oito anos, a lei diz, claramente, que inexiste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (entre outros casos).
Só que, na prática, as coisas não são assim tão simples.
Em primeiro lugar, nada impede que o recurso seja, ainda assim, interposto. E se for rejeitado, tem-se ainda a possibilidade de reclamar junto do tribunal superior, o que faz com que, no entretanto, vão passando mais alguns dias. Ou meses até.
Em segundo lugar, mesmo quando não seja possível recorrer de um acórdão, a regra é que o mesmo só transita em julgado dez dias mais tarde. Repito, para que fique claro: um acórdão que não admite recurso não se torna logo definitivo. É que, durante esses dez dias, as partes podem ainda reclamar, invocando nulidades ou irregularidades. E se o fizerem, é concedido prazo às partes contrárias para responderem, sendo de seguida proferida uma decisão. Não sendo incomum que decorra cerca de um ou dois meses, até que a decisão final acabe por ser tomada.
Isto, claro, se pelo meio ninguém se lembrar de dar entrada de incidentes de recusa de juiz, ou outros expedientes, como já se verificou em processos conhecidos. Nessas situações, a tramitação do processo congela e até que não seja decidido o incidente pelo tribunal superior, não se vai a lado nenhum.
Por último, temos ainda os recursos para o Tribunal Constitucional.
Quer o processo tenha entretanto subido para o Supremo Tribunal de Justiça, para que aí se profira nova decisão, quer tenha ficado no Tribunal da Relação, será sempre possível interpor, depois disso, um recurso para o Tribunal Constitucional, procurando explorar alegadas inconstitucionalidades que tenham sido cometidas, ao longo do processo.
A regra é de que esse recurso deve ser interposto no prazo de dez dias, através de requerimento. Esses dez dias contam-se a partir da data do acórdão, mas se, entretanto, a parte tiver reclamado de alguma nulidade, a jurisprudência do Tribunal Constitucional é no sentido de que se deve só recorrer depois de conhecido o segundo acórdão que a conheça.
O processo sobe, então, para o Tribunal Constitucional e, aí chegado, de duas uma: ou é rejeitado, através de uma decisão sumária (essa é, bem ou mal, a regra geral), ou então é admitido, sendo o recorrente notificado para oferecer as suas alegações.
Contudo, mesmo quando haja uma decisão sumária que rejeite o recurso, esse não será o capítulo final, já que a parte ainda pode reclamar para a conferência. E se aí não lhe for dada razão, persiste a regra de que é preciso, depois, aguardar ainda mais dez dias, durante os quais se mantém a possibilidade de arguir nulidades ou outros vícios, sem que a decisão transite em julgado.
E esses dez dias podem ser decisivos, até porque se, pelo meio, se atravessarem férias judiciais, os prazos só depois delas recomeçam a contar. E na prática, isso significa que ainda que um arguido tenha já tido a sua condenação em pena de prisão confirmada por dois ou três tribunais distintos, e mesmo depois do seu recurso para o Tribunal Constitucional ter sido rejeitado, tudo se mantém em suspenso, pelo menos até ao dia 1 de setembro (o dia seguinte após as férias judiciais do verão).
Só depois de tudo isto (e admitindo que, pelo meio, não houve anulações que levassem o processo a voltar atrás, o que, a suceder, faria com que se reiniciasse todo o percurso, com mais recursos a poderem ser eventualmente interpostos) operará o trânsito em julgado. E nesse momento, os volumes físicos do processo e os tais caixotes lá farão todo o caminho inverso, até regressarem à primeira instância, a casa partida, para que se determine, finalmente, o cumprimento da pena (se tiver havido condenação, como é óbvio).
De facto, durante toda esta fase de recursos, a regra é a do efeito suspensivo. Enquanto não se decidir o último recurso interposto e enquanto não se responder à última reclamação, o cumprimento da pena não pode iniciar-se. Mesmo que, de acordo com a lei, não seja possível recorrer de um determinado acórdão e o arguido decida ainda assim fazê-lo, só mesmo depois de proferida uma decisão que rejeite esse recurso e depois de indeferida uma eventual reclamação junto do tribunal superior, se permitirá que o processo transite e desça à primeira instância.
Para que fique claro, não quero, com este meu artigo, defender que o sistema é justo ou injusto, ou que não tem de ser permitido aos arguidos que exerçam os seus direitos de defesa, já que é isso que resulta da Constituição, aliás.
Mas não deixa de ser verdade que, pese embora a relevância do princípio da presunção da inocência, se perde muito tempo com ineficiências e idiossincrasias, desde logo motivadas por o processo não se encontrar todo ele digitalizado ou por não se permitir que as decisões se processem em ambiente digital de forma continuada.
É aliás curioso que mesmo depois de passar a ser obrigatório dar entrada das peças processuais via citius, ainda assim as mesmas não deixam de ser impressas e agrafadas ao processo, em papel.
Ninguém quer que os tribunais de recurso se precipitem e todas as decisões, como é óbvio, devem ser tomadas de forma ponderada e em consciência. Mas o que não faz sentido é que se continue a perder tanto tempo nos entretantos, com a subida e a descida dos processos. Ou que se ignore a importância das tecnologias informáticas como fontes de maior agilização e eficiência.
Aliás, é minha convicção que a comunidade não defende que a justiça se faça condenando. O que causa mais inquietação não é tanto que A ou B não sejam presos, mas sim que se demore tanto tempo a esclarecê-lo.
Mesmo do ponto de vista dos arguidos, não faz grande sentido que tenham de iniciar o cumprimento da pena quinze ou vinte anos após o sucedido. E mais grave ainda, que tenham de esperar tanto tempo para que se chegue definitivamente à conclusão de que, afinal, nada fizeram.
De resto, convém também não perder de vista que, enquanto a decisão não transitar em julgado, não será permitido (salvo situações excecionais) que eventuais ofendidos ou lesados obtenham a sua devida compensação. Certo sendo que, pelo meio, os bens arrestados podem perder valor ou até mesmo deteriorar-se (já para não dizer que o arguido se pode até ter tornado insolvente).
Uma justiça tardia, na realidade, não beneficia nem interessa a ninguém. Só alimenta a especulação, o descontentamento e a descredibilização.