Quem vive numa grande cidade nem sabe o tamanho da barriga que tem. Têm tudo e querem sempre mais. Nada está bem. É tudo contra todos e todos contra tudo. Desde pequeno que oiço dizer que a inconsciência da abundância traz, entre outras coisas, a arrogância da insatisfação. É capaz de ser verdade. Tendo sempre vivido em cidades, umas maiores, outras menores, outras mais cosmopolitas, também vivi em cidades com muito vagar, calmíssimas, como que a querer renegar uma próxima existência adulta, por troca com a inocência em manter-se pequena, jovem, com todas as grandes inconveniências, mas também com toda a alegria e irreverência de não ser crescida.

Das grandes cidades, a experiência que trago delas é que, para onde quer que me virasse, havia sempre saída para qualquer desejo ou problema; ter a capacidade para o resolver, isso já é outro assunto. Muita oferta e pouca chance de se usufruir de tudo, mas que está lá, está!, ao alcance de quem pode. De quem, como eu, tem optado por passar tempos infinitos numa aldeia trasmontana onde a única oferta é o tempo ilimitado que, apesar de correr com a mesma velocidade que nas cidades, é temperado pelo gosto e satisfação do escutar dos silêncios da montanha, dos galos que, confusos, cantam a desoras e ainda com o bater das horas do relógio da igreja que toca sempre duas vezes, não vá alguém estar ocupado no barulho dos seus pensamentos e se ter perdido no tempo. Os impostos que aqui pagamos são os mesmos caso vivêssemos em qualquer cidade. No entanto, não temos transportes públicos, o hospital fica a muitas curvas desde o ponto de partida até à sua chegada, e a distância nunca é medida em quilómetros, mas em tempo, pois as estradas são inclusivas e, como tal, não destoam da paisagem.

Mas descansem! Nós por cá também nos divertimos! E comemos bem: o pão é feito em forno de lenha, uma vez ao dia, e só o vamos buscar quando sentimos o seu cheiro. As batatas são as que apanhámos no início do Verão e a fruta idem. O vinho, ai o vinho!, disso nem quero falar. Mas a aldeia de Trás-os-Montes que me tem acolhido também tem um Centro Cultural. E o Centro Cultural da minha aldeia é uma papelaria-livraria cuja função principal é ser barbearia. E somos felizes.

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