O que tinha de acontecer, aconteceu. Sexta-feira, 62 horas de trabalho depois e com autorização para o fim-de-semana, o Pedro sai da escola e, de bicicleta, segue para casa, vira à direita em direcção aos semáforos, um condutor estacionado abre a porta de rompante e o Pedro sai a voar.

Levanta-se do chão o mais rapidamente possível. Teve sorte: o trânsito parou de imediato de modo a evitar o mais que provável atropelamento.

Atordoado, constata o estado da bicicleta, de guiador dobrado em L e ambas as rodas empenadas. Arrasta o velocípede para a berma de encontro ao condutor, cuja preocupação imediata foi a de tirar fotografias às suas coxas e pernas pelo que, ao fim de 30 segundos de conversa, o Pedro está seminu na berma enquanto o flash do telemóvel dispara ininterruptamente.

Segunda preocupação: quem é que lhe vai pegar o arranjo da porta do carro, implicitamente apontando o dedo para o ciclista que nunca tem a culpa, nem pode ter, nos casos de “car dooring”. Está na lei.

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Trocaram nome e dados de contacto e, surpresa das surpresas, o condutor é português! Português e do Cacém, em Londres há mais de 30 anos. “Amigo Pedro”, diz ele, isto resolve-se”, acrescenta do topo dos seus  60 anos, num repente mais relaxado enquanto com umas palmadas nas costas manda o Pedro para casa. Vira-lhe as costas e vai-se embora.

E o Pedro, ainda a tremer e sem perceber o que acabou de acontecer, maldizendo a sorte, segue a pé para casa, casa essa agora a hora e meia de distância.

Cinco minutos depois, e de volta a si, está ao telefone com a polícia, o sinistro tem se der declarado online e de telemóvel na mão preenche os dados todos, notificando o condutor de seguida.

Resposta: “Obrigado, amigo Pedro, vá em paz”.

Para arranjar a bicicleta são 600 libras, contas redondas, dizem-lhe na loja no dia seguinte. Nova mensagem para o condutor, devolvida com um seco “Eu ligo-te mais tarde”.

O mais tarde, depois da insistência do Pedro, e por ter direito ao sábado, ficou marcado entre as três e as quatro da tarde e o Pedro de plantão, telefone na mão, à espera uma hora por inteiro e nada. Até hoje.

Até hoje, as nódoas negras nos braços e pernas, o corpo dorido e ignorado por alguém cujas palmadas nas costas são o sinal de quem acha que já se safou.

E sim, já se safou, o condutor não se deu por culpado e a polícia foi célere a encerrar o caso por falta de provas, não obstante as fotografias e orçamentos enviados, mais a câmara de circuito fechado na clínica oposta ao local do acidente.

Nesta terra, já se sabe, a polícia não tem meios nem mãos a medir.

Se a isto acrescentarmos a vigência de uma lei em que um condutor responsável pela morte de dois ciclistas é condenado apenas a dois anos de prisão, a conclusão é óbvia: o nosso conterrâneo safou-se mesmo.

E a estatística está do seu lado quando, mesmo nos casos mais graves, quatro em cada cinco condutores mantêm a carta de condução e a liberdade apesar da perda irreparável de vida.

O caso do Pedro, em comparação, é perfeitamente negligenciável. Resta saber se ainda o espera, enviado pelo correio, a conta do arranjo da porta.

Não obstante, o Pedro já contactou uma firma de advogados e iniciou um processo contra o condutor por danos físicos e morais.

Por ter medo na estrada. A ansiedade, de cada vez que vai para a estrada, em cada carro parado um inimigo. Por ainda lhe doer o braço esquerdo, mais a consequente perda de força e flexibilidade.

Por não poder esquecer quando quem conduz é lesto a esquecer-se.

Esquecer-se de como na estrada o ciclista é o elo mais fraco. Para que não volte a acontecer.