Contexto global hodierno

“Falar é uma morte muito violenta. Mas nos teus braços morrerei, se me escutardes”.
(Daniel Faria, poeta)

Para Edgar Morin, a descoberta das Américas, do caminho marítimo para a Índia, a epopeica viagem de Fernão de Magalhães, e, mais tarde, a descoberta do heliocentrismo de Copérnico, afirmaram, por parte dos países europeus, um processo de domínio, por um lado, e de partilha circular de pessoas e bens (MORIN, 2023, pp. 57-59), por outro. Durante 500 anos assistimos a este fenómeno crescente de mundialização que se tornou global e globalizante.

Todavia, Edgar Morin julga útil usar em simultâneo as palavras mundialização e globalização, não deixando de os ligar. Diz ele: “é preciso ligar os dois termos: mundialização significa a extensão e amplificação de um processo de intercomunicações, de interdependências e esta ampliação cria uma realidade de natureza global. Existem interações permanentes entre as nações incluídas e a realidade global. O global modifica o local, mas um evento local, como o ataque às duas torres de Manhattan, repercute-se na realidade global. A realidade global não intervém apenas nos territórios, na economia, na sociologia das nações, mas em cada um de nós individualmente. Por outras palavras, o mundo como mundo está presente em mim e em todos os momentos da minha existência” (MORIN, 2023, p. 59).

Igualmente interessante é o que João Caetano e José Franco dizem no livro “A Globalização como problema, Temas de Estudos Globais”. Dizem eles: “o conceito de «mundialização» (ou «globalização», termo anglo-saxónico que haveria de se impor) assenta raízes na «utopia romântica» de fundo cientista do progresso humano em ordem à construção, pela razão, pela ciência e pela tecnologia, de uma comunidade global desenvolvida e harmónica” (CAETANO, 2020, p. 8).

Esta visão do mundo e da sociedade, assente ideologicamente no Iluminismo, levou a que muitos idealizassem utopicamente o mundo sem fronteiras e capitalista como Thomas Friedman e, paralelamente, conduziu outros a verem distopicamente o mundo actual, como podemos ler no ensaio filosófico sobre o individualismo contemporâneo de Gilles Lipovetsky, em “A Era do Vazio” (LIPOVETSKY, 1989).

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Convém afirmar que o processo de individualização nascente na Era Moderna, desde Descartes até Hegel, traz consigo duas dimensões: uma positiva e outra negativa. A positiva é que este processo imputa à pessoa humana a aquisição de um direito de autonomia, de liberdade (a roçar na linha ténue da libertinagem) e de responsabilidade pessoal e social. A negativa, porém, é que este processo de individualização pode traduzir-se em egoísmo (MORIN, 2023, pp. 61-62), numa perversão do ser pessoa como ser social e relacional, como responsável primeiro pelo bem-estar geral da comunidade, como protagonista da solidariedade entre os pares, como promotor do bem-comum e defensor da Casa-Comum (como sapientemente afirmou o Papa Francisco na Encíclica “Laudato Si”, 2015).

Portanto, segundo Edgar Morin, “o processo de mundialização-globalização que continua (na actualidade) é um processo profundamente ambivalente. Se se projetar esse desenvolvimento global no tempo, vemos que o que o caracteriza é o seu total descontrolo” (MORIN, 2023, p. 63), conduzindo a um novo paradigma. A consequência do desenvolvimento tecnológico começa a posicionar-se como prioritário face ao ser humano. Por outras palavras, o caminho que temos vindo a traçar tem revelado que nós, seres humanos, estamos cada vez mais ao serviço (e até dependentes!) do desenvolvimento tecnológico do que seria expectável. Então, o que é que seria expectável e desejável? Seria expectável e desejável que o desenvolvimento tecnológico estivesse mais ao serviço do Homem do que o Homem ao serviço dele. Mais, a própria economia global está fora de controlo. Basta ver a infindável e colossal dívida dos Estados ou como a especulação financeira pode destruir toda uma comunidade, todo um país e toda uma cultura civilizacional. Gostaria de deixar um excerto da reflexão que Gilles Lipovetsky faz da sociedade actual e do individualismo a ela associada: “O ideal moderno de subordinação do individual às regras racionais colectivas foi pulverizado; o processo de personalização promoveu e incarnou maciçamente um valor fundamental, o da realização pessoal, do respeito pela singularidade subjectiva, da personalidade incomparável, sejam quais forem, sob outros aspectos, as novas formas de controlo e de homogeneização simultaneamente vigentes. Sem dúvida, o direito de o indivíduo ser absolutamente ele próprio, de fruir ao máximo a vida, é inseparável de uma sociedade que erigiu o indivíduo livre em valor principal e não passa de uma última manifestação da ideologia individualista; mas foi a transformação dos estilos de vida associada à revolução do consumo que permitiu este desenvolvimento dos direitos e desejos do indivíduo” (LIPOVETSKY, 1989, p. 9).

Isto ajuda a compreender o que Edgar Morin afirmou quanto aos três aspectos indissociáveis do processo de mundialização, isto é, a mundialização, o desenvolvimento e a ocidentalização (MORIN, 2023, p. 60). Assim, segundo Giddens, “o termo e o conceito de «globalização» a ele associados afirmam um novo paradigma de conhecimento multidisciplinar, multidimensional, implicando a consideração de diferentes temporalidades e espacialidades e colocando em relação o que até hoje era estudado de forma compartimentada” (CAETANO, 2020, p. 7).

Bibliografia

CAETANO, J. R. (2020). A Globalização como problema. Temas de Estudos Globais. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
LIPOVETSKY, G. (1989). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d’Água.
MORIN, E. (2023). Pensar Global, o Homem e o seu Universo. Lisboa: Edições Piaget.