É recorrente ouvirmos que a democracia está sob ataque.
Seja por causa de conflitos bélicos ou de movimentos políticos extremistas, este é um chavão que sai facilmente da boca dos líderes políticos de países com democracia liberais quando confrontados com eventos que causam disrupção na perceção da paz social vigente em cada momento.
Óbvio que a própria política é um jogo de luzes e sombras, onde nem tudo é o que parece e o que parece não é. É um jogo de perceções.
Por isso, é importante não perdermos foco do que é realmente importante, consideradas as múltiplas chamadas de atenção que concorrem para os nossos sentidos. A verdade é que quando nos focamos demasiado no acessório deixamos de cuidar do essencial. O que constitui o objetivo principal das ideias e agentes disruptores.
No meio de todo o ruído que diariamente nos assola é possível detetarmos alguns padrões, cujo traço comum é gerar tensão nos modos de convivência social vigentes. São múltiplas ações e ocorrências que procuram extrapolar sentimentos e gerar perceções que não correspondem à realidade em geral e ao pensamento do cidadão comum. Mas cujas repetições, em frequência e intensidade, são suficientes para instalar a dúvida. É essa a sua função: fazer duvidar.
Duvidar que o nosso modelo de organização política e social nos serve enquanto sociedade.
Duvidar que estamos seguros enquanto comunidade.
Duvidar dos processos que governam o nosso dia-a-dia.
Duvidar de quem está ao nosso lado.
Em última instância, duvidarmos de nós mesmos.
Mas, a quem interessa este estado constante de ansiedade e dúvida? Naturalmente, a quem tem algo a ganhar com a reconfiguração social resultante da exploração dos nossos sentimentos mais básicos.
Estejamos a falar de grupos com convicções religiosas ou políticas, logo, de organização social, radicalmente diferentes das que vigoram nos países ocidentais, ou de grupos económicos que procuram a maximização dos seus ganhos através da captura dos meios de decisão económica, há sempre um traço totalitário nestas “entidades disruptivas”.
A via mais radical e mais rápida para gerar esta disrupção, mas também a mais incomum atualmente pelos custos que comporta, é através de conflitos declarados. Além de que o grau de certeza na sua eficácia é baixo.
Todavia, existe outra via, mais lenta, insidiosa, incremental, com avanços e recuos e igualmente consumidora de recursos, ainda que de outra natureza. A da inserção nos institutos sociais formais existentes, explorando as suas fraquezas, gerando pequenas mutações no seu modus operandi, muitas vezes impercetíveis para olhares pouco atentos e minuciosos.
São estratégias estudadas, aprendidas e difundidas. Resultam de uma testagem constante, onde se exploram fragilidades e se pressionam limites. Sem fraturar, jogando dentro das regras do jogo, de forma a se tornarem aceitáveis, internalizáveis, ao invés de serem um corpo estranho facilmente rejeitável por incompatibilidade com o organismo vivo que é cada grupo social.
Porém, procuram a todo o custo obter cada vez mais poder. Político, económico e financeiro. Por uma razão simples: tais iniciativas precisam de investidores de longo prazo. Que também esperam obter os seus retornos materiais e imateriais.
Bem sabemos que a melhor via de se obter tal retorno é através do acesso à máquina estatal, pois esta encontra-se bem oleada por uma impiedosa máquina de impostos, cuja subida ou descida também acaba por ficar na esfera de decisão destes grupos, assim como a decisão de utilizarem, ou não, meios coercivos para garantir a sua coleta. Os fins a que se destinará essa coleta dependerá, em última instância, das forças motivadoras, e sustentadoras, destas “entidades disruptivas”.
Quando falamos da máquina estatal tanto nos podemos referir à administração direta do Estado como à indireta e autónoma. Todas elas gozam de prerrogativas de privilégio, tanto mais reforçadas quanto a natureza burocrático-administrativa vigente no ordenamento jurídico de cada país. Em países com um ordenamento económico e social mais liberal as dinâmicas de controlo tendem a ser outras.
Tudo isto para dizer o quê?
Que não podemos estar desatentos, pois essa atenção custar-nos-á mais do que aparenta à primeira vista.
Temos de ser vigilantes da ação dos eleitos para qualquer órgão do Estado / Administração Pública, assim como da ação daqueles que estes nomeiem.
Temos de ser vigilantes dos fluxos financeiros inerentes às suas decisões.
Temos de ser vigilantes das alterações às “regras do jogo” e da exploração in extremis das possibilidades contidas nessas regras.
E temos de ser especialmente vigilantes daqueles que procuram a todo o custo manter-se no poder. Seja onde for, em que parte do Estado for.
Por nós. Pelo presente. Mas acima de tudo, pelo futuro.