No dia 15 de julho de 2023, o jornal Observador publicou um texto da autoria do Coronel Rodrigues do Carmo (RC), que não é mais do que a continuação de repetidos insultos e ataques que tem vindo a fazer-me nas redes sociais e a que nunca respondi. A passagem das redes sociais para um jornal de referência obriga-me a vir à liça. É com algum constrangimento que o faço, preferindo o debate de ideias à pronúncia sobre indivíduos e seus comportamentos.

A linguagem grosseira, agressiva e provocatória utilizada por RC no referido texto não ajuda a promover o tão necessário debate saudável e confronto de ideias sobre temas importantes para a nossa sociedade.

Textos crispados como este convidam à polarização e incentivam a radicalização. Revelam uma completa ausência de disponibilidade para debater com quem não se está de acordo. Em alternativa, opta-se pelo insulto e ofensa. O texto em causa é de uma atroz mediocridade analítica (tema a desenvolver noutro artigo). Cheio de imprecisões e raciocínios primários, é, acima de tudo, um desfile pouco sofisticado de adjetivos ofensivos. Atribui-me expressões que não correspondem com exatidão ao por mim afirmado, distorcendo-as de forma conveniente, para se encaixarem nos seus propósitos, nas suas teses fantasiosas. À laia de exemplo, eu nunca afirmei, como me atribui, que “o que aconteceu em Belgorod foi uma ação festivaleira para justificar a continuação do fornecimento de armamento”. É falso! Como noutros textos seus, RC transforma as suas convicções em factos, em realidades que não carecem de comprovação. Nas suas confabulações, RC escreveu, por exemplo, que eu admiti ser um colaborador do grupo Valdai, e presença assumida em muitas reuniões. RC terá de provar onde é que eu disse ou escrevi isso. E, já agora, quando.

RC recorre ao passado para explicar o meu pensamento atual. Sem pretender “lavar roupa suja”, e a título muito excecional, irei responder-lhe recorrendo igualmente ao passado, segundo duas linhas de raciocínio: o seu carácter e o seu pensamento, uma vez que o primeiro influencia decisivamente o segundo e ajuda a compreendê-lo melhor. Teremos, portanto, dois textos, cada um dedicado a uma temática.

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Para além de utilizar uma linguagem boçal e rasca, RC violou vários princípios éticos tácitos, de quem passou uns anos pela Gomes Freire (designação da Academia Militar no meio castrense), e que ainda vão prevalecendo entre militares, pelos vistos cada vez menos, mesmo com quem se privou de perto.

Tivemos (eu e RC), no passado, uma relação bastante cordial – trabalhámos juntos, fui ao seu casamento, estive no funeral da esposa, recebi-o em Florença, ajudei-o quando precisou de completar o tempo de serviço que lhe faltava para reconstituir a carreira (tema a ser desenvolvido adiante). Cheguei, inclusivamente, a frequentar a sua casa. Nunca discutimos política, nunca me pronunciei publicamente sobre a sua pessoa ou sobre o seu pensamento.

Fazendo então uma rápida incursão ao passado de RC, começo por referir que tem o curso de Comandos; era comandante da companhia de instrução, quando, em dois incidentes distintos, morreram três instruendos do curso de Comandos (primeiro curso de 1988), acontecimentos que estiveram na base de um processo que levou mais tarde ao encerramento do Regimento de Comandos. Em meados da década de noventa do século passado, rumou aos paraquedistas.

Durante os anos em que esteve no ativo, e ao contrário de muitos camaradas da sua geração, não participou em operações de paz, tendo apenas uma fugaz passagem, como oficial de ligação, pelo quartel-general da SFOR (Sarajevo) em 1998, quando já não havia guerra na Bósnia. Não esteve na mira de um sniper, não acionou minas, não esteve debaixo de barragens de artilharia, não viu pessoas a morrer à sua frente, não esteve preso (essa não me tocou), não foi deixado apeado em Cabul, debaixo do fogo, etc. Em suma, não beneficiou da mundivisão cosmopolita que as operações de paz proporcionam.

Uma vez nos paraquedistas, e desiludido com a vida nas Forças Armadas, aproveitou oportunisticamente uma lesão contraída num braço, durante o curso de Comandos, para ser considerado deficiente das Forças Armadas (DFA), o que conseguiu tangencialmente, com incapacidade de 30% (mínimo para poder ser considerado DFA).

É legítimo estar-se descontente com a Instituição Militar. Passa-se à reserva e inicia-se uma vida nova, sem aspirações a promoções futuras. Mas RC engendrou uma maquinação ou, se quisermos, um golpe: ser DFA, com todas as vantagens que a situação lhe traz. Podia ter continuado ao serviço ativo como DFA, conforme previsto no regulamento, e como fizeram outros camaradas DFA, com graus de incapacidade muito superiores. Não foi essa a sua opção. Tinha-se esvaído o espírito de missão.

Convirá notar que a lesão contraída em instrução, durante o curso de Comandos (1984), não o impediu de frequentar posteriormente, com aproveitamento, o Curso de Operações Especiais, em Espanha. Nem o impediu, já depois de ser DFA, de efetuar longas caminhadas de “purificação da alma”, fotografando-se a fazer flexões de braços (“esmagar” no jargão militar) com mochila às costas, um feito incrível para um indivíduo que adquiriu o estatuto de DFA por incapacidade em resultado de um problema num braço. Assim como não o impediu de vir mais tarde a integrar uma companhia privada de segurança, em Moçambique (Cahora Bassa). Apesar das suas conhecidas posições políticas, RC não teve pudor em ser assalariado da FRELIMO ou, se quisermos, e recorrendo à sua terminologia, trabalhar para uma ditadura comunista.

Em 2005, chefiando eu a Repartição de Pessoal Permanente da extinta DAMP, agora DAHR, RC bateu à porta do meu gabinete a pedir-me ajuda. Esgotado o filão moçambicano, estava na altura de regressar e pedir a reconstituição de carreira. Era então Tenente-Coronel. Como não tinha o tempo de serviço necessário para pedir a reconstituição de carreira, arranjei-lhe uma colocação que não exigia a sua presença permanente, uma vez que morava ainda em Montalvo. A colocação mais próxima de casa que lhe consegui arranjar foi em Lisboa. E, assim, o DFA RC foi promovido ao posto de coronel, por reconstituição de carreira, contando a antiguidade do novo posto desde 14 de fevereiro de 2005, data a partir da qual lhe foram devidos os respetivos vencimentos, recuperando a antiguidade no seu quadro especial (Infantaria). Enquanto andava a fazer pela vida em Moçambique, os seus camaradas de curso, menos astutos, “passeavam-se” por Mafra, Santa Margarida, Tancos, etc.

RC parece consumir grande parte do seu tempo a perscrutar e a desconsiderar nas redes sociais a mão que lhe deu de comer. Não lhe conheço posições públicas sobre a Condição Militar, o alegado “Controlo Democrático das Forças Armadas,” ou a degradação dos serviços de Saúde Militar. Esses temas cruciais para a família militar não suscitam o seu interesse. Porquê? Porque, como DFA, RC tem e terá, enquanto for vivo, apoio médico e medicamentoso gratuito, algo a que quem não é DFA não tem direito.

Para além da já sublinhada medíocre capacidade analítica, RC aplica rótulos às pessoas, coloca-lhes etiquetas com base nos seus preconceitos ideológicos. Incapaz de lidar com a complexidade, o seu processo mental é, como veremos, básico e primário: há cinco décadas UEC/PCP, então agora marxista e apoiante de Putin, portanto, putinista, mesmo sem nunca se fazer a apologia do regime instalado em Moscovo. Facto indiscutível para ele. Ironicamente, em termos de conceção da sociedade, RC está ideologicamente muito mais próximo de Putin do que eu.

Durante o PREC, e falamos de há cinco décadas atrás, muita gente da minha geração participou no movimento estudantil, militando a sua grande maioria na esquerda e na extrema-esquerda. Tiveram, na generalidade, carreiras de sucesso. Espalharam-se pela magistratura, docência universitária, atividade empresarial, diplomacia, comentário político, Comunicação Social (o diretor deste jornal explicará a RC, certamente muito melhor do que eu, o que foi o “Grande Salto”, ou a “Revolução Cultural”, responsáveis pela fome que grassou na China durante décadas), etc. Um deles foi particularmente longe (até à Goldman Sachs). Esse período da história portuguesa foi único, para o bem e para o mal. Representou, acima de tudo, uma experiência social que RC não viveu e que, por isso, parece ter alguma dificuldade em compreender.

RC está convencido da superioridade e infalibilidade do seu pensamento. Para RC, a única forma de debater é insultar e ofender. É pecaminoso e detestável não pensar como ele, logo, passível de ser objeto de perseguição e achincalhamento público. São conhecidas as expressões que emprega nas redes sociais: “eu conheço-te”, “és um lobo com pele de cordeiro”, “não me enganas”, colocando-se num patamar de superioridade bacoca, inescrutável. Convivendo com dificuldade com o estado democrático em que se vê inserido, RC teria tido uma fulgurante carreira numa polícia política.  

RC sente “vergonha alheia por esta deplorável troika de generais”, e interroga-se, se “isto é um General do Exército português?” — Será que quem se tornou DFA de modo suspeitoso, que não se manteve ao serviço ativo e foi para Moçambique trabalhar para a FRELIMO tem autoridade moral para sentir e referir tais perplexidades? Os generais da troika, como ele lhes chama, estiveram, conheceram, aprenderam, correram riscos. RC teve as mesmas oportunidades profissionais, mas só foi coronel, e apenas porque a carreira lhe foi reconstituída, a seu pedido e nas circunstâncias atrás referidas. Caso contrário, nem isso seria. Com tais telhados de vidro, seria aconselhável manter alguma contenção.

RC acusa-me de “passear pela Frunze [presumo que se esteja a referir à Academia Militar M. V. Frunze] e por Moscovo, a expensas da Mãe Rússia, para participar nas coreografias do Grupo Valdai”. Não é o único que tem recorrido às redes sociais para me fazer esse tipo de acusações. Contudo, e antes de procurar denegrir, RC devia preparar-se melhor, por forma a evitar dizer disparates; a Frunze (como lhe chama) e o Valdai são entidades não miscíveis, são coisas diferentes. Desconhecendo a localização do quartel-general do Clube Valdai, sei que é distinta da designada Academia Militar Frunze, a escola de estado-maior das Forças Armadas Russas, onde, como Diretor da Cooperação Militar da NATO, intervim em várias conferências na qualidade de palestrante, curiosamente pago pela fazenda nacional (regras em vigor na NATO).

Já esclareci, em várias ocasiões, que não tive nem tenho qualquer ligação ao Clube Valdai. Só indivíduos ignorantes ou de má fé podem considerar uma fotografia em que se vislumbra um logotipo do Valdai Club uma prova inquestionável de pertença ao clube. Ao invés, apenas confirma o que disse atrás sobre o processo mental de RC, informado e flexível como uma pedra da calçada.

As acusações de RC (e outros) sobre esta matéria assumem extrema gravidade, afetando seriamente a minha reputação. Desafio RC, ou qualquer outra dessas pessoas que tenham regurgitado fantasias semelhantes na Comunicação Social ou nas redes sociais, a deixar-se de insinuações e provar publicamente a existência de qualquer participação minha em iniciativas do grupo Valdai, para além de um artigo que escrevi e ainda se encontra online. Se não o conseguir(em) fazer, não posso deixar de o(s) apelidar de canalha(s).

RC é, acima de tudo, e socialmente falando, um inadaptado e um triste exemplar de militar e de cidadão! Quando não se está bem consigo próprio é difícil estar bem com os outros.