No dia 15 de julho de 2023, o jornal Observador publicou um texto da autoria do Coronel DFA Rodrigues do Carmo (RC), de que constam vários comentários que merecem ser contraditados por forma a demonstrar que a análise feita pelo autor não passa de um exercício pobre e medíocre, de qualidade rasteira, sem integrar os assuntos na sua totalidade nem olhar à complexidade dos mesmos, ao que acresce um notório desconhecimento daquilo de que fala. Embora possa ser lido autonomamente, é conveniente que, para uma completa compreensão, a leitura deste artigo seja precedida da leitura da sua primeira parte, em artigo separado.

Há uns anos, “desamiguei” RC do meu mural do Facebook. A gota de água foi a sua reação a um artigo da minha autoria em que criticava a operação anglo-francesa na Líbia, transferida mais tarde para o Comando e Controlo da NATO, que levou ao derrube de Gaddafi. As consequências nefastas daquela operação, das quais podemos destacar a onda de imigração ilegal que afetou o sul da Europa, são conhecidas e estão ainda bem presentes no nosso dia-a-dia. Conforme argumentei na altura, Gaddafi tinha-se tornado um idiota útil cuja manutenção no poder era conveniente para a Europa, opinião largamente consensual.

Ao invés, RC aplaudia a operação contra Gaddafi, isto porque tinha de pagar pela explosão do avião da PAN AM sobre Lockerbie (1988). Qualquer pessoa cujas leituras extrapolem a Wikipédia sabe que a Síria e o Irão foram os mentores do ataque executado pela Frente Popular de Libertação da Palestina – Comando Geral, sediada na Síria, tendo Hafez al-Assad como um dos principais mentores da operação. RC não apanhou a complexidade da coisa.

As posições dos comentadores militares sobre o conflito na Ucrânia podem ser, em termos genéricos, divididas em dois grupos, cujas posições refletem, curiosamente, as suas experiências profissionais. De um lado estão os que estiveram na guerra e, do outro, os que não estiveram. As vivências pessoais parecem afetar o modo como se percecionam os acontecimentos. Se é que é possível enquadrar a posição de RC, ela aproxima-se do segundo grupo.

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Passarei a comentar alguns dos temas abordados por RC no seu texto, focando-me naqueles em que me parece mais evidente o seu desconhecimento e a medíocre capacidade analítica, ou até mesmo má-fé. Como no caso da Líbia, também no que respeita ao fornecimento de bombas de fragmentação à Ucrânia, RC parece ser dos poucos que repudiam quem condena tal fornecimento e considera que essa decisão pode significar a abertura uma “caixa de Pandora” em que os “grandes prejudicados serão os ucranianos”. O Canadá, o Reino Unido, a França e a Itália, entre outros países da NATO, tomaram, de forma pública, uma posição condenatória. Como escreveu Elon Musk no seu Twitter, “A América sempre considerou maus aqueles que usam bombas de fragmentação, e agora estamos a enviá-las? Nada de bom resultará disso. O destino ama a ironia, mas odeia a hipocrisia”. Serão apoiantes de Putin?

Será difícil perceber a vulnerabilidade em que se estão a colocar os ucranianos, uma vez que os russos têm incomensuravelmente mais peças de artilharia com o calibre adequado para lançar aquelas munições? A Rússia tem 23 tipos diferentes daquelas munições e pode empregá-las recorrendo também ao vetor aéreo. O que se poderá ganhar ao abanar um ninho de vespas?! É falso afirmar que a Rússia tem empregado esse armamento sem quaisquer restrições. Mais uma vez, RC não sabe do que fala. Perora com base no preconceito.

É verdade que afirmei que “A Ucrânia não tem capacidade para avançar com uma contraofensiva [vencedora]”, como se está a confirmar. Os acontecimentos estão a dar-me razão. É uma opinião que começa a ser partilhada por largos setores, em particular norte-americanos.

Todos os problemas que tenho vindo a elencar e que inviabilizam a possibilidade de uma vitória ucraniana estão aí. Como referiu Daniels Michaels no Wall Street Journal, “o Ocidente sabia que Kiev não teria armas suficientes para a ofensiva e acreditava na “desenvoltura” das Forças Armadas da Ucrânia (FAU), mas isso não ajudou”. O artigo vai mais longe e esclarece as razões de tal afirmação, que coincidem com o que venho a dizer há meses: limitação ucraniana em recursos humanos; escassez de munições (como disse Joe Biden, “we’re low on it [munições]”); a guerra eletrónica russa e a incapacidade para utilizar convenientemente o Starlink Wi-Fi; e os drones anticarro Lancets.

Fazendo eco de opiniões que emergem, o New York Times chegou à conclusão que “a luta basicamente chegou a um impasse e a Ucrânia enfrentou muitos obstáculos contra um inimigo determinado”. O resultado é claro. A Casa Branca não está satisfeita com o ritmo da contraofensiva ucraniana. O coordenador de comunicações estratégicas do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, disse publicamente que a contraofensiva ucraniana estava “muito lenta“. Só não vê isto quem vive numa realidade paralela. Vivemos sete semanas de insucesso. Como afirmei e reitero, o dispositivo russo tem-se mostrado inexpugnável, em particular no Sul, na região de Zaporizhzhia.

A incapacidade revelada pelos ucranianos para desalojar as forças russas do seu território levou ao surgimento nos EUA de setores que começam a considerar a possibilidade de uma solução política. É uma ideia que grassa em Washington, e não falo apenas no Partido Republicano. São conhecidas as posições sobre a matéria dos principais candidatos republicanos às eleições presidenciais. No início de julho, a NBC  dava conta de uma iniciativa de “track 1.5 diplomacy”, levada a cabo por um grupo de ex-funcionários de segurança nacional dos EUA, que manteve conversas secretas com russos proeminentes próximos do Kremlin – e, em pelo menos um caso, com Lavrov – com o objetivo de estabelecer as bases para negociações conducentes ao fim do conflito.

Também o Moscow Times deu nota desses desenvolvimentos. Afinal, “os EUA estão preparados para trabalhar de forma construtiva tendo em consideração as preocupações de segurança nacional russas”, e “não importa quanto trabalho os EUA possam empreender agora, mais cedo ou mais tarde a Rússia e a Ucrânia terão de se sentar juntas à mesa de negociações.”

Importa relembrar, em especial aos mais desatentos, que a política internacional não se rege por princípios morais, mas por interesses. É assim, goste-se ou não. A fórmula que se vier a encontrar para a resolução do conflito ucraniano será a que melhor convier a Washington e a Moscovo; não será necessariamente a que mais interessar a Kiev. Os afegãos são disso exemplo, tanto em 1992 como em 2021. Podíamos referir muitos outros exemplos, recordamos apenas o fornecimento de armas químicas a Saddam Hussein no seu confronto com o Irão.

Outro tema que causou incómodo a RC foram as minhas declarações sobre a autoria ucraniana dos ataques à Central Nuclear de Zaporizhzhia. RC não estará familiarizado com a análise de crateras, mas vendo as imagens e sabendo-se a localização dos edifícios (o Google maps dá uma grande ajuda), consegue-se saber a direção genérica da origem dos disparos. Caso a totalidade ou a maior concentração de estilhaços se encontre em paredes viradas a norte, como é o caso, estamos perante um forte indício de terem sido atingidas por disparos provenientes de um local a norte. As leis da física ainda não são putinistas.

Se não tivesse abandonado o serviço tão cedo, talvez RC soubesse distinguir o impacto de um míssil de cruzeiro dos estragos causados por uma onda de sopro, isto referindo-me aos acontecimentos em Lviv. As ondas de sopro destroem os vidros das janelas e levantam os telhados das casas. Um míssil de cruzeiro X-22, como afirmou Zelenski, nunca teria produzido aquele efeito. Se tivesse calcorreado as cidades da Bósnia, RC sabia do que estou a falar.

Retirar frases ou partes das mesmas do seu contexto é um truque a que RC recorre frequentemente. Reitero o que disse relativamente às pretensões expansionistas estratégicas da Polónia. Expliquei isso num artigo de opinião. São eles próprios a referi-las. O primeiro polaco a escrever sobre o tema foi Józef Piłsudski quando desenvolveu o conceito do Intermarium na década de vinte do século passado, visão reformulada por Juliusz Mieroszewski e Jerzy Giedroyc no final dos anos 1950. As iniciativas polacas no pós Guerra Fria (Grupo de Visegrado, “Bucarest 9”, e mais recentemente a iniciativa dos “Três Mares” promovida pelo presidente Andrzej Duda) visam dar corpo a esse projeto.

A Polónia procura gerir uma relação difícil de amor-ódio com a Ucrânia. A parte do ódio tem a ver com o passado, em particular com o assassínio de polacos na II Grande Guerra às mãos de nazis ucranianos. Como disse Jaroslaw Kaczyński, ex-vice-primeiro ministro polaco e líder do Partido Lei e Justiça, “Não podemos concordar com a formação na Ucrânia de um culto de pessoas que chegaram ao ponto de praticar atos de genocídio contra os polacos. Se a Ucrânia continuar a construir a sua identidade nacional no culto ao colaborador nazi Stepan Bandera, ela não entrará na Europa.” Ainda segundo Kaczynski, “isto é um assunto de escolha da Ucrânia.” “Eu disse claramente ao presidente Poroshenko que eles não entrarão na Europa com Bandera. Para mim, esta é uma questão muito clara. Mostramos muita paciência, mas há limites para tudo.” Mais recentemente, o tema de uma ação militar polaca na Ucrânia foi levantado no parlamento em Varsóvia. Muito mais havia a dizer sobre o tema. As minhas afirmações não são uma lucubração pessoal.

É infantil reduzir o presente conflito ucraniano a uma conveniente fórmula maniqueísta e despojá-la da complexidade que ela encerra. Os bons contra os maus; de um lado, os invadidos, do outro, os invasores. É uma mensagem forte para efeitos de Comunicação Estratégica, porque é simples e fácil de ser apreendida, mas não é útil para ajudar a compreender um conflito complexo.

A escola neorrealista das relações internacionais explica com muita clareza o que move os Estados na cena internacional. John Mearsheimer, uma das figuras proeminentes do neorrealismo ofensivo, não ilibava em 2014, num artigo na Foreign Affairs, os EUA e os seus aliados europeus da partilha da responsabilidade pela crise na Ucrânia. Escrevi vários textos nesta mesma linha de pensamento. Só faltava agora RC, nas suas lucubrações, considerar Mearsheimer um perigoso leninista, agente do Kremlin.

Estudo e ensino Resolução de conflitos (ReCo) há mais de duas décadas, e um dos princípios básicos da ReCo é tentar perceber as queixas e os motivos de cada uma das partes envolvidas num conflito. Isso requer que se compreenda o posicionamento e os problemas de cada uma das fações para se poder perceber quais serão as suas possíveis soluções. Isso exige uma abordagem neutral.

Percebo que as partes envolvidas – EUA e Rússia – montem as suas campanhas de Comunicação Estratégica, que definam as suas agendas de temas e mensagens. Estranho seria se não o fizessem. Mas eu não me sinto obrigado a alinhar nelas. Compreendo as demonizações que cada campo faz do adversário. Desde o início do conflito (e com isto não estou a dizer que do outro lado não há centrais de desinformação), as centrais de propaganda ocidentais construíram com entusiasmo a imagem de um “heroico cavaleiro ucraniano” que derrota facilmente inúmeras hordas asiáticas e vai assim “salvar a Europa” e, em última análise, a humanidade e a Ordem baseada em regras. Será esta a única leitura dos acontecimentos? A verdade única? Será razoável reduzir esta guerra a uma luta do bem contra o mal?

Ora um tema desta importância não pode ser discutido com base na emoção e na troca de injúrias e acusações malévolas, mas sim na razão. É naturalmente legítimo que cada um se entrincheire no campo que corresponda às suas verdades, às suas crenças e aos seus preconceitos, mas não é aceitável que essas divergências se manifestem na forma de injúrias e impropérios.

Cada um acredita naquilo que lhe parece mais adequado. Há quem acredite, e não são poucos, que a Rússia não tem munições, que os soldados russos são frouxos e fogem mal avistam os “heroicos cavaleiros ucranianos”, que aprendem a manejar as armas na Wikipédia, que foi preciso Shoigu ser Ministro da Defesa para os soldados terem meias, que Putin tem cancros, que Gerasimov foi morto (os russos fizeram o mesmo relativamente a Zaluzhnyi e Budanov), que os russos vão explodir a central de Zaporizhzhia com minas antipessoal, que os frigoríficos na Rússia foram desmanchados para lhes serem retirados os chips para a construção de misseis (esta pérola foi verbalizada por Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia), etc. Consolem-se com as lucubrações que lhes apetecer, mas não venham regurgitar que a verdade é a primeira vítima da guerra.

É especialmente deprimente assistirmos ao logro em que caíram as elites europeias, vítimas da sua própria propaganda, propaganda essa em que acreditam sem pestanejar, sem capacidade crítica e sempre predispostos a engolir o que lhes vendem. Mas o que é verdadeiramente chocante é a sua disponibilidade para abraçar acefalamente a desinformação mais básica e rudimentar que lhes é colocada à frente. Deixou de ser necessário refinar a mensagem, seja o que for dito, por mais inverosímil que seja, é aceite sem reservas. Isto aplica-se, naturalmente, a todas as partes envolvidas.

Particularmente perigoso é o que se passa com a Academia, a Comunicação Social e segmentos importantes da elite política que não param para pensar e reproduzem acriticamente, sem filtros e sem refletir tudo o que lhes é posto à frente. Afinal, parece que há boas e más mentiras, e, como dizia Roosevelt sobre Anastasio Somoza “He’s our son of a bitch”, e isso não tem discussão.

Talvez não fosse despropositado ler-se o artigo que Ikenberry e Kupchan assinaram em 1990, na “International Organization”, com o título “socialização e poder hegemónico”, onde dissertavam sobre o controlo das nações secundárias do sistema internacional pela potência hegemónica e sobre o modo de obter e manter a sua “cooperação”. Sem menosprezar a importância dos incentivos e recompensas materiais para o conseguir através da coação, alertavam para a necessidade de a potência hegemónica codificar as designadas crenças substantivas em que assenta a Ordem que pretende liderar.

Ainda houve quem dissesse umas coisas acertadas no início da guerra, antes de serem intoxicados pelo funcionamento a todo o vapor da máquina trituradora da propaganda. Até José Milhazes disse umas coisas óbvias. Mas depois impôs-se a disciplina. Fez-se tábua rasa dos temas inconvenientes (corrupção, extrema-direita, etc.), que foram sendo progressivamente substituídos por outros menos “ácidos”. Limpou-se a história.

Particularmente grave, foi ter-se convencido a grande maioria que era possível fazer soçobrar a Rússia, uma potência nuclear, recorrendo aos ucranianos. O Putin não é corajoso e vai claudicar. Até vamos fazê-lo saltar da cadeira do poder. Damos-lhes armamento, dinheiro e apoio político e já está. Como dizia Timothy Ash: “está a custar amendoins aos EUA derrotarem a Rússia”; “A assistência [norte-americana] representa 5,6% dos gastos totais de defesa dos EUA… em termos geopolíticos frios, esta guerra oferece uma excelente oportunidade para os EUA corroerem e degradarem a capacidade de defesa convencional da Rússia, sem botas no chão e com pouco risco para as vidas dos norte-americanos.”  Não acreditar nisto não é ser putinista. É ser realista, sobretudo para quem, por motivos profissionais, teve de conhecer razoavelmente bem o exército russo, e sabe alguma coisa do que está a falar.

Desejos e preferências à parte, o que o Ocidente precisa de entender com sobriedade é uma simples e dura realidade: a Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo e não vai ser expulsa dos territórios ocupados. Isto não é defender os pontos de vista do Kremlin. É, mais uma vez, ser realista. Os crentes nos sonhos irrealizáveis podem esbracejar e espernear, mas isso não os vai livrar de ser confrontados com a realidade. Veremos a quem dará o tempo razão e cá estaremos então para conversar.

É fácil e é barato apelidar pessoas de antiocidentais ou antiamericanas, sem se explicar exatamente o que isso significa. Os EUA não são a clique liberal intervencionista que causou os acontecimentos de 2014, durante a Administração Obama, e que, após o interregno da Administração Trump, voltou a tomar as rédeas do poder em Washington e conduziu o Ocidente para o impasse em que nos encontramos. A presente Administração norte-americana não são os EUA.

Tudo isto é “demasiado andamento” para RC, incapaz como é de perceber a complexidade e as nuances explanadas. Para ele, distinguir o neorrealismo do putinismo, independentemente do que isso seja, é um exercício egregio. Nem com giz, um quadro preto, uma garrafa de tinto e uma noite de trabalho atingirá o que se pretende dizer. Não perderei o meu tempo a explicar-lhe a falta de senso nas salganhadas mentais em que se envolve (putinismo, leninismo, marxismo, bakuninismo, etc.), pela simples razão que RC é incapaz de avaliar a informação neutralmente. As suas avaliações são sempre condicionadas por um filtro cognitivo que lhes atribui significado em função de conclusões pré-determinadas. Por isso, não será exagerado afirmar que RC vive numa bolha, numa realidade virtual em que quem não concorde com ele é putinista e comuna, conseguindo no seu imaginário a perfeita quadratura do círculo.

Discutir com ignorantes acaba sempre mal, e esta resposta forçada e indesejada à incontinência de RC termina aqui. Confabulando, dizia-me um conhecido tenente-coronel lá no Regimento de Comandos com razão: “Branco, nunca tente ensinar um porco a cantar. O porco não aprende, você fica rouco, e no fim nem sequer lhe agradece.” RC seria mais preciso se, em vez de Coronel Comando, se identificasse como Coronel DFA Comando. Assim, não enganava ninguém. Com tamanho apego à causa ucraniana, não entendo como é que não está já nas terras do Kievan Rus de arma na mão, na linha da frente, a combater pela nossa salvação.