No seu Leviathan, Thomas Hobbes determinou que o homem é o lobo do próprio homem; neste contexto pandémico, essa premissa está por demais evidente. O crescente atomicismo liberal das nossas sociedades mostra-se na exponenciação do egoísmo com que nos deparamos.

Esta realidade aplicou na opinião pública a própria ideia hobbesiana de que as maiores tiranias são melhores do que qualquer guerra civil. De certo modo, contribuímos involuntariamente para o nosso maior medo: a imposição de prolongados e severos estados de exceção, ferindo-nos precisamente no recanto do conforto da nossa liberdade negativa.

Tal como Alexis de Tocqueville profetizou nas suas reflexões sobre a democracia americana: o individualismo exagerado provocaria um egoísmo impotente, isolando o indivíduo de qualquer propósito comum, a não ser o da indiferença e da suspeita sobre o outro. Sempre patente nestes ambientes tóxicos, surge assim uma espécie em vias de propagação: o delator, tendo como propósito condenar e vigiar todos aqueles refratários que ousam sair minimamente da ortodoxia individual de pensamento e ação.

Mas que importam hoje as lições dos senhores de outrora?

Os seus argumentos avisaram-nos dos perigos que o indivíduo corre quando se retira da sociedade e da política e permite ao Estado entrar em cada recanto da vida. Afinal Hobbes e Tocqueville, figuras que desfrutam hoje de pouco tempo de antena, faziam melhores previsões há um par de séculos do que a Maya ou qualquer Professor Bambo prometem hoje: foi Tocqueville que, aquando do nascimento da democracia liberal, conseguiu apresentar as falhas que poderiam determinar o seu fim. E nós, ignorando a suas ilações, provamo-lo certo.

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O clima de isolamento e de egoísmo permite ao indivíduo, de forma inadvertida e a partir do seu próprio pináculo de liberdade, destruí-la. Em 2020 já caminhávamos para o caminho da servidão professada por Hayek, e em 2021 aproximamo-nos do nosso destino final, como se de uma Lei Férrea inevitável se tratasse.

Um campo árido e frio – figurativa e literalmente – em que nos encontramos sozinhos, isolados, privados daquilo que nos torna completos e humanos – os outros. Retiraram-nos a comunhão em religião – seja qual ela for; proibiram-nos a reunião associativa, a cultura, a liberdade; em plena verdade: subtraíram-nos.

Deixamos assim esta questão: o que leva um vizinho a virar-se contra outro vizinho? A pandemia pôs-nos a todos à prova e revelámo-nos uns verdadeiros delatores uns dos outros. A moda viral de denunciar o outro, de ver se levou o cão à rua três ou seis vezes – como se de um ativista animal se tratasse – de fotografar o vizinho da frente que está a fumar um cigarro com a dona do café e colocar nas redes sociais, procurando julgar em praça pública por crime de lesa-majestade; ou de chamar a polícia para prender o padre criminoso que se encontra a celebrar uma missa não autorizada.

É de uma cacofonia atroz pensar que o outro, o nosso próximo, se tornou no nosso maior alvo e que dedicamos as nossas energias a analisar cada passo em falso dado pelo vizinho, entrando numa espiral de culpabilização, apontando dedos e críticas, enquanto deixamos passar incólumes e serenos os verdadeiros inimigos.

Porventura o antídoto destes comportamentos esteja nestas palavras: “Assim, a democracia não só faz esquecer a cada homem os seus avós, como lhe esconde os seus descendentes e o separa dos seus contemporâneos; recondu-lo sem parar a si só e ameaça encerrá-lo enfim por inteiro na solidão do seu próprio coração.” Como tal, é necessário amar a Liberdade, a nossa, e a do Outro. Em todo o instante.