Escreverei as próximas linhas assumindo-me como ator de um processo e enquanto professor que sou há quase duas décadas. Focar-me-ei na questão da escola que quero e da escola que considero necessária para que possamos ter um país melhor.

A situação educativa atual requer uma contextualização e para isso devemos recuar um pouco na história, mais precisamente ao ano de 2005, visto por muitos como o princípio do fim da escola pública, como elevador social. Quase dezoito anos passados, posso dizer, sem ficar longe da verdade, que batemos no fundo!

Foi esse o resultado das políticas das últimas décadas. Ninguém quer saber se os professores estão académica e intelectualmente aptos, exemplo disso é o último Despacho n.º 10914-A/2022, de 8 de setembro, que revê os requisitos mínimos para a docência.

A escola transformou-se num enorme centro social de dia para crianças e jovens! As escolas não podem fechar porque a sua função assistencial se tornou tão grande que se sobrepôs à educativa.

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Isso foi notório durante toda a época da pandemia e volta a sê-lo agora, com as greves e a necessidade de decretar serviços mínimos. Na realidade, os serviços mínimos decretados não são mais do que o assumir por parte da tutela que o estado social faliu. Faliu porque se esgota na escola toda a oferta social.

Por isso, hoje, pouco importa se os professores são competentes, académica e pedagogicamente, porque o que lhes é pedido é que sejam guardadores em centros de dia, que sejam administrativos e que informem os pais das faltas dos filhos, que aceitem, sem levantar questões, as justificações, a bem dos números para o abandono escolar.

Que sejam capazes, em turmas numerosas ou de multinível, de detetar a dislexia, os défices cognitivos, os abusos familiares, a violência doméstica, o bullying, que referenciem à Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que escrevam os relatórios, que recolham evidências daquilo que afirmam. Sempre as evidências que funcionam como garante da idoneidade. Pedem-lhes que façam quase tudo, que os meios são poucos, e no final, se houver um tempinho, que ensinem qualquer coisinha. Sim, qualquer coisinha é aquilo a que se resumem as aprendizagens essenciais. Mas também lhes pedem que não sejam demasiado exigentes. Nada de grandes exigências, para evitar o insucesso escolar.

Insucesso que se deve, dizem, à inépcia dos professores, pois reina a ideologia de que nunca será exigido à criança ou jovem de hoje qualquer esforço suplementar para que consiga passar obstáculos.

O decreto de lei 54/2018 tratará de adaptar aos mínimos para que o sucesso seja alcançado.

Também pedem que lidemos com a indisciplina escolar, que aceitemos o perturbador, prejudicando os demais, que sejamos inclusivos e que por isso sejamos capazes de captar a atenção de duas dezenas de alunos e ainda atender ao que é autista e acaba de agredir o colega, ou à que tem trissomia 21 mas não comunica convenientemente.

Pedem que aceitemos a inclusão candidamente, quando sabemos que é altamente prejudicial, excluindo duplamente. Exclui aquele que carecia de cuidados específicos e aqueles que são prejudicados pela presença do primeiro.

Pedem que simulemos sucesso, que evitemos abandono, que ensinemos poucochinho, que avaliemos assim-assim. O importante é garantir a permanência de todos dentro do estabelecimento escolar, o importante é a escola continuar a fazer o papel social de alimentar quem vê na escola a sua única fonte de sustento.

Ninguém quer saber se os alunos têm falta de aulas por falta de professores, se perdem aprendizagens porque ninguém mais quer ser professor, se perdem aprendizagens porque os professores entram em depressão devido à sobrecarga de trabalho estupidificante e de competência alheia, que os impede de serem intelectuais, de serem ativamente evolutivos, de serem professores!

Por tudo isto, temos novamente os professores na rua. No passado dia 11, no espaço de dois meses, participei na minha quarta manifestação, fora as vigílias à porta da escola ou os plenários em frente ao Ministério.

Ter os professores na rua é uma das consequências das políticas implementadas nas últimas décadas. Para entendermos a consequência temos de fazer uma análise das causas que nos trouxeram aqui. Temos, devia ser, têm. Aqueles que nos governaram estas última duas décadas.

Mas, a ouvir o que disse a ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues, “não sei nem quero saber como aqui chegámos”, percebe-se que ou somos nós, professores e sociedade civil, a lançar estas discussões publicamente ou ficaremos órfãos de discussões sérias, apesar de complexas.

É inegável que as reivindicações dos professores são justas – o andar com a casa às costas 15 ou 20 anos, os baixos salários, a proletarização da profissão, a burocracia estupidificante, a inexistência de carreira real, com os congelamentos e quotas. Mas o que se passa atualmente é muito mais do que as simples, permitam-me que assim as apelide, reivindicações profissionais dos professores. Digo isto porque elas já são antigas e então fica difícil para muitos perceber porquê agora? Porque é que, se são reivindicações antigas, estão agora na mó de cima?

Porque a perceção que tenho do terreno, das inúmeras conversas que vou tendo com centenas de colegas, e daquilo que vou lendo, é que essas, não sendo de somenos importância, são a gota que faz transbordar o copo.

Certamente concordarão que é reconhecido que os professores são uma classe profissional academicamente formada, intelectualmente apta. Só assim faz sentido serem professores. Uma classe que não seja intelectualmente ativa, que não veja necessidade de aprofundar o seu conhecimento, que não seja capaz de refletir práticas, que não busque constantemente a evolução, seja no conhecimento, seja na sua prática pedagógica, não é uma classe de professores, é um aglomerado de proletários.

É desta escola que os professores reclamam hoje na rua, é esta a escola que os professores sabem que não querem. A escola dos mínimos, a escola que, orgulhosa e propositadamente, ignora a intelectualidade dos seus atores, olha-os com suspeita, desconfiança e por isso burocratiza-os e proletariza-os.

Não é esta a escola que os professores querem, não é esta a escola que eu quero, não é esta a escola que devemos querer.

É urgente debater estas questões publicamente, a urgência deste debate deve-se, sobretudo, ao facto de estarmos com uma carência sistémica de professores. Os que já o são estão na rua, exigindo melhor educação, os que não são não vão querer ser, e mesmo aqueles que um dia pensaram em seguir a profissão estão, agora que veem os professores na rua, a recuar.

Só teremos melhor educação quando conseguirmos aproveitar os bons professores e, ao mesmo tempo, captar os melhores estudantes para esta profissão. Esse feito só se consegue quando formos capazes de tornar a carreira atrativa. Não há jovem hoje que ao escolher a sua profissão não preveja o futuro e a forma de progressão profissional.

Dignificar a profissão, tornando a carreira mais atrativa, passa em primeiro lugar por devolver alguma respeitabilidade aos professores, devolvendo o tempo de serviço efetivamente trabalhado para efeitos de progressão. É desonesto subtraí-lo. Valorizar o conhecimento, apostando no rigor e na exigência da formação inicial de professores, valorizar a experiência e a formação académica, bonificando aqueles com maior grau académico e eliminando os garrotes economicistas, as malfadadas quotas, que desvirtuam o empenho, desmoralizam a aquisição de conhecimento e deterioram o clima organizacional.

Dignificar é pagar vencimentos condignos, que permitam que os professores possam viver com dignidade cultural e intelectual, que possam ter acesso à cultura, à formação relevante, que possam aprender ao longo da vida.

Dignificar é garantir que não seja por falta de capacidade financeira que faltam professores em várias zonas do país, subsidiando se necessário. Criar condições organizacionais promotoras de ambientes saudáveis de aprendizagem, começando desde logo por rever o modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, recuperando a sua democraticidade. Revalorizando o currículo, que tem sofrido demasiadas alterações de eficácia pedagógica questionável, de que são exemplo as já referidas aprendizagens essenciais, dar autonomia às escolas para que, mediante os contextos onde se inserem, possam reduzir o número de alunos por turma e definir o máximo de alunos por professor. Escolher que modelo de avaliação se quer e qual o seu propósito, rever o diploma de inclusão entre tantas outras questões que tem trazido retrocesso às escolas e à educação.

É esta a revolta dos professores que os levaram novamente às ruas. Esta é, ou pelo menos deveria ser uma luta do país, uma luta de todos nós. Devemos estar todos revoltados com o estado a que a Educação do país chegou, não só os professores, não só as pessoas que trabalham nas escolas, não só os alunos ou aqueles que são pais, a revolta deve ser de todos, por uma educação de qualidade, custe o que custar.