Um dos factos mais surpreendentes deste tempo de contágio global é o total desaparecimento do desporto de competição, profissional e amador, da agenda de decisão política, da prioridade dos vários grupos de interesse económico, social e académico, e a pacífica resignação a esta conjuntura dos milhões de amantes de desporto, dirigentes, técnicos, atletas e adeptos.

O desporto desapareceu como se nunca tivesse existido e não fosse importante para uma larga maioria de nós, os seus agentes corporativos fundamentais, públicos e privados, eclipsaram-se, e a discussão sobre o seu futuro imediato não existe. Qualquer que seja o ângulo com que o olhemos, é um fenómeno extraordinário.

No entanto, mais grave ainda é os agentes desportivos de topo, tutela política, ligas, federações e clubes, nalguns casos não terem ainda percebido, e noutros casos recusarem-se a partilhar a informação de que há uma forte possibilidade de o desporto continuar encerrado mais um ano, ou ano e meio.

Ou seja, não estamos a falar da interrupção desta época, já efectivada, mas da possibilidade de o começo da próxima ser adiado em vários meses.

Se assim for, as consequências desportivas e financeiras para as modalidades, as federações, os clubes, os técnicos, os atletas e as famílias poderão ser extremamente graves.

Aponto aqui o horizonte de ano a ano e meio porque é, neste momento, o único oficial com que podemos contar.

Na verdade, quebrando a excepção que refiro no princípio deste texto, o Primeiro-Ministro, António Costa, referiu-se pela primeira vez ao desporto na entrevista que deu ao “Expresso”, no passado dia 18 de Abril.

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Questionado sobre o futuro imediato dos “eventos culturais e desportivos”, o Primeiro-Ministro respondeu que “não vamos ter normalidade até haver vacina. Temos todos de nos compenetrar que durante o próximo ano, ano e meio, não vamos viver como vivíamos antes do mês de Fevereiro”.

O momento global que vivemos é original, é específico, e tudo pode vir a acontecer nos próximos meses, nas dimensões política, económica, social e desportiva do nosso país. No entanto, para já, a agenda de decisão política é a partilhada pelo Primeiro-Ministro. Partindo desta, creio que será útil pensar pelo menos nas questões decisivas.

A grelha de análise de questões decisivas que vou partilhar de seguida distingue, primeiro, o futebol profissional sénior de todo o outro desporto de competição, e, depois, já apenas no território de todo o outro desporto de competição, os espectadores dos praticantes.

No que tem a ver com o futebol profissional sénior, o cenário é muito simples. Num movimento inédito na história do futebol português, os agentes, liga, federação, clubes, irão avançar com uma proposta conjunta de reabertura imediata do campeonato. O objectivo dos agentes é o de conseguirem as receitas das transmissões televisivas e respectivas activações de marca.

O que os agentes propõem são jogos à porta fechada, uma garantia muito rudimentar de não contágio por parte dos seus profissionais, metodologias específicas de treino, a realização de uma pré-época e o recomeço do campeonato em Junho.

No que tem a ver com todo o outro desporto de competição, o cenário é também muito simples. Com escassas excepções, nenhum agente, de um clube a uma federação, de um técnico a um jogador, propôs algum plano e, basicamente, todos aguardam indicação superior.

Quanto a mim, este é um erro estratégico. Devem ser os agentes, do surf ao râguebi, do futsal ao andebol, do remo ao ténis, a reunir o conhecimento de saúde, legal, organizacional e desportivo necessário, e a apresentarem aos decisores políticos planos sensatos e viáveis nas dimensões política, legal, sanitária e desportiva.

Como escrevi o desporto de competição para além do futebol enfrenta o problema dos espectadores e o problema dos praticantes.

Em relação aos espectadores, em recinto aberto ou fechado, a única opção válida neste momento, segundo o que consigo vislumbrar, é transformar a presença em recinto num privilégio que exige “premium” e em transferir a visualização do jogo para a plataforma digital. Explicando melhor, mantendo-se as indicações de concentração e reunião de pessoas em espaço público, os agentes desportivos terão a responsabilidade, que é muito séria, de velar pelo seu cumprimento no acesso e na permanência dos adeptos no recinto.

Isto implica, face ao que é a natureza da esmagadora maioria dos recintos desportivos fechados e abertos portugueses, uma redução drástica do número permitido de espectadores. Esta redução leva a que os agentes federação e clube tenham várias opções, de um vasto leque existente. Podem, numa ponta do leque, impedir a presença ao vivo de espectadores, até, noutra ponta, transformar a presença num privilégio que tem um custo, que é aliás, o que os clubes de futebol pensam fazer em relação aos camarotes.

Qualquer que seja a opção, o que os agentes têm de perceber desde já é que se não investirem na transmissão por plataforma digital dos jogos, a frequência dos seus desportos irá diminuir radicalmente, o que gera sérias consequências financeiras e desportivas.

O problema dos praticantes, e essencialmente penso nos praticantes menores de idade, que são a esmagadora maioria, é muito mais complexo e agudo. De facto, o problema é simultaneamente ético e prático, e assenta na premissa inegociável que os agentes têm de garantir aos praticantes e às suas famílias uma garantia total de não contágio durante um período extenso de tempo.

Certamente, alguns clubes beneficiarão do facto de uma minoria de praticantes e famílias não ir exigir a garantia que mencionei, e outros farão os responsáveis parentais assinar termos de responsabilidade. Outros ainda irão valorizar o menor grau de risco das suas modalidades, por serem individuais, ou por serem praticadas em espaço aberto, procurando assim captar famílias e potenciais praticantes, o que, neste contexto, é efectivamente cativante.

Entendo estas três opções, mas para mim nenhuma delas é aceitável.

Assim sendo, creio que aos clubes resta apenas, no caso de se manterem as regras legais e temporais definidas pelo Primeiro-Ministro, a proposta de um plano assente na adopção das práticas e instrumentos sanitários exigíveis e para já existentes.

Como escrevi, por imperativo ético e prático, os clubes têm de eliminar do modo mais eficaz possível o risco de contágio dos seus atletas nos treinos e nos jogos. Tal não poderá ser conseguido se os clubes não investirem em parcerias com entidades de saúde, na aquisição de material específico, e na capacidade de mudança de paradigma dos seus desportos.

No capítulo das parcerias, os clubes devem tentar fazer tudo o possível para a realização periódica e repetitiva de testes de contágio e de imunidade aos seus atletas, bem como aos familiares directos, e devem também adquirir vastas quantidades do material sanitário necessário, a começar pelo gel desinfectante.

No campo do material específico, parece-me, neste momento, face ao conhecimento que tenho e à informação que adquiri, que pode ser limitada, que nenhum desporto colectivo poderá ser praticado sem o uso obrigatório de máscara por parte dos atletas e dos técnicos, tanto em treino, como em jogo. Ao contrário do que muitos pensam, o mercado tem já uma variedade impressionante de máscaras desportivas disponíveis, e as necessárias especificações técnicas, aprovações regulamentares e estandardizações são apenas uma questão de escolha e de trabalho.

Finalmente, no que tem a ver com a mudança de paradigma, cada agente desportivo deve ter a imaginação, o sentido prático e o bom-senso necessários para alterar tanto alguns dos fundamentais como algumas das regras do desporto que ama. A opção é entre não treinar e não jogar, ou treinar e jogar.

A análise que acabo de partilhar pode perder qualquer interesse ou validade dentro de semanas ou meses. No entanto, fi-la a partir do único dado sério e material que existe neste momento, que é o da agenda do Primeiro-Ministro.

A minha ideia fundamental é a de que a partir do que está estabelecido pelo decisor político, os agentes desportivos devem reflectir, agir e propor. Pode acontecer que o investimento de tempo e conhecimento não seja suficiente para permitir o encetar da actividade desportiva de competição no período habitual da próxima época.

Mas é muito mais valoroso estudar e agir do que ficar à espera de ordem superior.