1Ah os criadores… Diz-se que são especiais e são. Com o corpo, a voz ou o gesto, com a mente ou o verbo, fazem o que não somos capazes de fazer, dizem o que não sabemos dizer, olham o que não vemos. Espanto-me sempre. Com os que já estão em museus ou bibliotecas, com os que vão estar, com os que ainda criam em surdina, longe das luzes. O diálogo que mantêm com eles próprios só pode relevar da graça, dom entre todos apetecido mas avaro na sua própria distribuição. Poucos são os que quando pressentem o sopro o levam até á criação. Guardei o instante precioso em que reencontrei alguns em 2022, guardei o que de belo me emprestaram e quero levar comigo na dobragem do ano. Como quem leva um álbum de fotografias.

2 “Estou espantado comigo próprio, com o que aqui vejo” dizia-me Jorge Martins num murmúrio quase aturdido: “Lembro-me que enquanto pintava ia gostando cada vez mais, era a pintura a trabalhar e eu a trabalhar nela, sem sequer me dar conta do tempo sombrio que vivíamos – estávamos na pandemia. Afinal não se reflectia no que pintava.…”

Era a festa naquela tarde em Évora. Era o que as telas e os papeis convocavam, a vibração da festa, os seus sinais exteriores de cor e de sedução. E tão fortes, coisa rara em Portugal, isto da festa. Um “espirito que pairava de sala em sala”, repletas de espectadores a tomar partido por aquela súbita cintilação. Trabalhei bem” disse-me o pintor. Sabia – e sabia-o jubilosamente – que “tivera a responsabilidade das coisas que pusera na parede”:

“Os papeis têm de facto qualquer coisa de novo, foi um passinho em frente, usei uma técnica que até aí só tinha usado em tela…”

Semanas depois Jorge Martins ainda se emocionava. A lembrança da inauguração da sua exposição neste ano de 2022 era-lhe doce e amável. Escorria por ele como mel. Conhecendo o o artista plástico há tantos anos, acompanhando de muito perto o seu trabalho, tendo-o elogiado publicamente, ainda me desconcerto com uma simplicidade, meia racional, meia auto-irónica que nada contagiou ou subverteu. Insisto na minha perplexidade: como é que das sombras da pandemia nascera tanta luz? AH, “ a pandemia havia de passar ,como outras coisas passaram por ele, logo se havia de ver.” O que há a ver permanece no sul alentejano, ainda podemos participar da festa. Até à primavera, as muitas tonalidades da cor e da forma “deste” Jorge Martins, estão á nossa disposição na branca Évora. Á nossa espera.

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3 Quando entrei no camarote do S. Carlos onde simpaticamente me acomodaram com soprano Elisabeth Matos e o maestro António Pirolli, titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, a Companhia Nacional de Bailado já interpretava o primeiro acto da “Giselle”.

Tão datado e sempre actual no dramático contraste entre a graciosa inocência do primeiro acto e a irremediabilidade da morte na segunda parte. Envolta na pungência de um fúnebre romantismo onde as “Wilis” evoluíam pelo palco, recolhidas sobre a sua própria morte, num lago de tristeza. Tão derisoriamente belo, tão bem dançado. E estrelado por Marcelino Sambé, hoje primeira figura do Royal Ballet (RB) que conta quase mais prémios internacionais que anos de vida. Voltava ao S. Carlos para dançar Albretch, voltava como grande estrela da companhia inglesa (trazendo consigo uma etérea Giselle, Anna Rose O’Sullivan). A sala afogou-se em aplausos intermináveis, reverenciando o jovem Marcelino. Sete anos depois reencontrei-o igual a ele próprio, de tão sorridentemente acolhedor. Tínhamo-nos conhecido quando então viera dançar a este mesmo palco, já inteiramente tocado pela graça que abençoou a sua vocação de bailarino. Os anos, a vontade, a disciplina, ampliaram-lhe a graça e os deuses aprioraram-lhe o génio. De tudo isto falamos depois no “backstage”, com o palco aberto sobre a belíssima sala do S. Carlos, agora já irrisoriamente vazia. Nesse tão particular momento em que um interprete-criador se reencontra com ele mesmo após deixar o seu personagem jazer sem vida sobre a madeira do palco. Falamos da “felicidade” do talento, falamos da “obrigatoriedade de honrar as oportunidades,” como foi a entrada com uma bolsa para a londrina Royal Ballet School, o convite para ficar, na companhia, o caminho percorrido: sempre a subir até ás estrelas como ele.

4 Camané. Foi ao CCB este ano e foi como sempre insuperável. Ou como acho sempre que ele é quando canta e já o escrevi mil vezes. Por obra e graça de si próprio consegue transmitir-nos que afinal se supera mesmo, em relação à ultima vez, ao ano passado, a última actuação, ao disco mais recente. Não está apenas a cantar, está a seguir o sopro da criação. Não sei de mais ninguém que de cada vez nos convoque assim, para a melancolia do fado, reinterpretando-se nessa superação de si mesmo. E no entanto… Camané surge-me sempre misteriosamente fechado na concha de uma timidez antiga, quase constrangida, como se, sem sombra de pose ou de encenação, hesitasse ou descresse do seu talento: “Não sei como vai ser… não estou nada certo disto”… Estamos nós felizmente, os que o ouvimos, deixando a nossa devoção encher salas e plateias. Mas ele é assim. Não se pode fazer caso (e nunca ninguém nos disse que a timidez era incompatível com a criação).

5 Tiago Morin é musicólogo. Mas ao escolher sê-lo, quis que a música fosse ouvida, que ela interpelasse, agisse, interagisse. Professor, soube juntar gente, ensinou, entusiasmou. Teve o dom de despoletar talentos que tem vindo a aperfeiçoar e de amadurecer outros. A persistência recompensou o mérito: hoje tem um pequeno grupo em Óbidos, que toca diversos instrumentos e canta a várias vozes. Foram eles que embalaram musicalmente a missa do Galo deste ano, no Santuário do Senhor da Pedra, o castelo ao longe erguendo-se das muralhas debruadas de luz. A performance musical foi quase admirável na qualidade do reportório escolhido e na ambição dessa escolha. É assim que se cresce num grupo com pouca idade e numa também pequena vila portuguesa. Mas por entre o incenso e as velas acesas numa expectativa sempre renovada, foi aquele fortíssimo halo musical que tornou ainda mais poético o mistério do Natal e o seu espantoso anúncio.

PS: Era para mim o “menino Mega”, coisas das redações. E foi sempre assim durante a nossa extraordinária vivência dos melhores anos da Revista do Expresso (graças a Marcelo Rebelo de Sousa, que é bom nestas coisas). Prefiro hoje deixar só a minha pena e guardar a sua memória onde cabe muita coisa. A minha admiração, o António leva-a consigo. Não me é necessário cantar no coro do “costume” nem ele me mereceria isso. Escrevo o que vi e o que vi basta-me como despedida: muito frequentemente, daquilo que o António Mega Ferreira antevia, pensava e depois concretizava, costumava sair luz. Basta, basta-me, como epitáfio.

Era um passageiro frequente da Revista do Expresso — escrevendo ou não nela – e nunca esquecerei a velocidade estonteante com que naquele tempo sem computadores ele ia até lá escrever à máquina alguma colaboração e como logo a seguir, daquele mecânico, incessante matraquear, saíam textos invariavelmente magníficos — sempre fez o que quis com as palavras. Partilhávamos a Itália — quem não partilha a “segunda pátria de toda a gente” como disse alguém? — e partilhávamos o Benfica vorazmente. Foram anos incrivelmente felizes aqueles da Revista, com o Vicente, o Mega, o Seabra e os outros… Inesquecíveis. (E embora dificilmente transmissíveis e impossivelmente repetíveis continuam, digamos assim, persistentemente por contar).

O sopro que habitava António Mega Ferreira foi sempre activamente polifacetado e polifónico, tocou todos os instrumentos que quis tocar e alguns sublimemente e a isto se chamará o poder de criar. Era enfim um desinstalado que acreditava. Ah claro, era um diletante, mas só porque se podia dar a esse luxo: quem lho negaria?