Alguns livros são feitos daquela matéria perene, que não se esgota, e que nos incita a revisitá-los, em diferentes fases das nossas vidas. Chamo a esses livros “as minhas cabeceiras”. Porque invariavelmente e com regularidade frequente, ocupam nelas o seu espaço, que lhes pertence. O da cabeceira, e o da minha cabeça.
Um bom amigo relembrou-me, há pouco tempo, de um desses livros que, por isso, voltei a lê-lo. Porque sempre que o li, deixei-o com um sabor agradável de saudade – porque é curto e profundo, e porque a ele apetece voltar. Os grandes livros têm esta capacidade de nos fazer ver e sentir coisas distintas, de cada vez que os acolhemos.
O Cavaleiro da Armadura Enferrujada, é um pequeno conto de 70 inspiradas páginas de Robert Fisher que, nesta sua primeira obra de ficção, nos conduz a uma procura existencial de um homem, pelo seu verdadeiro “eu”, escondido atrás de sucessivas máscaras que, por defesa inconsciente de medos irracionais, ou por mera incapacidade de lidar com o peso das emoções, foi acumulando, para sobreviver à ilusão que criou do que era a sua vida, e de quem ele próprio se tornou perante essa ilusão. Até não conseguir dar mais um passo, tolhido por esta sensação de profundo vazio. E, com ele, o medo e a profunda angústia.
Desta vez, este livro conduziu-me para uma reflexão sobre a atitude mais adequada para lidar com um mundo que apresenta desafios muito grandes que nos conduzem, tantas e tantas vezes, a procurar fugas fáceis, subterfúgios pouco saudáveis e uma infantilização que nos retira a liberdade de sermos responsáveis, devolvendo-nos à dependência de querer repousar num colo que nos absolva de tomar decisões. Um colo que nos proteja, e nos faça desaparecer a dor. Porque tudo parece demasiado grande, incerto e assustador para lidar. E isso bloqueia-nos.
O nosso cavaleiro fez o oposto. Mesmo com todo o medo que o dominava. Mesmo com toda a angústia por ter de enfrentar dragões, e outros grandes desafios, que, apesar de serem sempre muito maiores dentro da sua cabeça do que a dimensão que na realidade tinham, não deixavam de o amedrontar, ele foi, passo a passo, desbravando o caminho de regresso a si próprio.
E isto é o que um empreendedor faz. Fazer, apesar do medo. Não que um empreendedor não tenha medo de assumir riscos. Ele tem. E, quanto maior a missão, quanto maior a responsabilidade – e, por isso mesmo, maior o que houver a perder -, maior o medo. Mas também mais ele se motiva. Não é por acaso que o verbo “empreender” tem 2 significados que são paradoxais – por um lado, significa levar a efeito, realizar uma ação que, por norma, não é algo fácil e, por outro lado, “empreender” também significa, cismar e sentir apreensão. Ou seja, é fazer acontecer, mesmo sentindo medo e apreensão. Mas porquê? Porque um espírito empreendedor tem a consciência da capacidade que tem de mudar a sua circunstância e, por outro lado, sabe que assumir a responsabilidade pela sua própria vida, é o maior ato de exercício da sua liberdade.
Pondo isto em miúdos – um empreendedor faz porque pode, e faz porque é livre.
Empreender e ser empreendedor tem, portanto, um significado que vai muito mais além do cidadão que cria o seu próprio emprego, o empresário, ou o “idiota” que é altamente criativo e dotado de uma característica que mais ninguém tem. Isso seria, num dos casos, uma visão redutora e, noutro, uma crença alimentada num mito.
Um empreendedor é, em primeiro lugar, alguém que toma consciência de que nada nesta vida surge em consequência de nada. De uma ação prévia que gere um resultado. Mesmo que essa ação se consubstancie numa ausência de ação – pode existir muita estratégia numa inação pensada.
Depois de ganha a consciência, o empreendedor decide traçar um plano. Para isso, tem que tomar decisões, dentro dos vários cenários possíveis que se lhe apresentam, e das várias possibilidades de diferentes ações. Vou para a esquerda ou para a direita? Implemento a ação “x” ou “y”? E é aqui que entra a criatividade. O mito vem de se achar que alguns de nós são criativos e outros não. Todos somos criativos, a partir do momento em que tomamos decisões, e assumimos essas decisões de ação, como responsabilidade nossa. Pois o resultado dessa ação, passa a ser uma criação nossa, e só nossa. Não existiria se não a escolhêssemos, e a não a puséssemos em prática.
O empreendedor aceita, depois, o seu destino. E se o destino não estiver alinhado com a sua intenção inicial, nem por isso ele deixa de se levantar de novo, para enfrentar o próximo dragão. O próximo desafio. O próximo medo. E, em cada superação, o empreendedor (o cavaleiro) vai crescendo. E as armaduras vão caindo. Mas como assim as armaduras vão caindo?
Pois é. Este é o grande mistério de assumir uma atitude empreendedora. De termos a coragem de assumir a nossa quota parte de responsabilidade. É que o caminho é difícil. Sim. Mas nunca chegamos ao final do caminho iguais. Os erros, aquilo que assumimos como certo e falhou, as conquistas que levámos. Tudo isso nos transforma. E se os nossos projetos mudam o mundo, também nós somos mudados pelos nossos projetos. Ao ponto de (des)cobrirmos, de revelarmos parte de nós que não conhecíamos, nem sabíamos existirem. É um salto de fé. Mas, sem ele, sem dar esse passo, nunca vamos saber o que está para lá do castelo. E eu não quero o peso de uma armadura enferrujada a contar a história da minha vida. Porque os meus sonhos são meus, e só a mim me compete realizá-los.
“Para onde vão as coisas dos sonhos? / Vão para os Sonhos dos Outros?” Pablo Neruda, Livro das Perguntas