É o primeiro dia de escola e o Pedro está nervoso como qualquer artista antes de um grande concerto. No ginásio do liceu, espera-o o palco com a mesa de DJ, um microfone, algumas máquinas e na plateia os seus colegas que tentam perceber de onde vem o fumo que os encandeia. O Pedro sobe, introduz o que vem fazer, canta e toca as quatro músicas de sua autoria, produzidas na Academia de música urbana em Alcântara, que frequenta há dois anos. “Acreditem, vocês podem ser como eu, artistas, produtores, não interessa se cantam romântico, drill, trap, hip-hop”. Palmas para o Pedro, cumplicidade dos colegas, missão cumprida. Orgulho máximo dos professores que no fim querem tirar fotografias com o artista e pedir autógrafos.
A Joana sofria de fobia escolar. Desde os 12 anos que não ia à escola, vítima de bullying. Com a pandemia o seu estado agravou-se ao ponto de não conseguir sair de casa. Aos 16 anos a instituição que tem a cargo a Joana decide sugerir-lhe participar em sessões de criação musical em conjunto com outros jovens, num lugar diferente, e que não lembra uma sala de aula. Onde não há professores. A Joana desconfiada, aceita. Hoje tem 18 anos, o Filipe passou-lhe o entusiamo pelo piano e ela descobriu que a relaxa, até já toca a quatro mãos. Tem um gosto muito grande por organização, logística e acaba a ser contratada para a parte da equipa de produção desta “não-escola” que descobriu. A mesma onde está o Pedro. Está feliz.
Um projeto de educação não-formal, como este em que o Pedro e a Joana participam na área da música, pode constituir-se como espaço acolhedor de aprendizagem e socialização, pode levar a projetos de vida mais ambiciosos e à reconstrução da relação com as instituições, diminuindo assim o risco de exclusão. Simplificando, o acesso à cultura e a possibilidade de a criar dá vida e, abrindo horizontes, reduz o efeito de exclusão social.
O acesso à cultura está consagrado no artº 27º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
“Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”. Manter as regras de acesso à cultura, nomeadamente através de métodos clássicos, de educação formal, rigorosos e assentes numa hierarquia vertical, faz com que seja mais difícil para algumas pessoas usufruírem das manifestações culturais por falta de compreensão dos “códigos” que as criaram. Torna especialmente difícil o acesso à mesma por pessoas com baixos níveis de escolarização. Esta exclusão simbólica é, ainda, agravada pela desvalorização sistémica das manifestações culturais ditas da “baixa cultura” – ou o underground.
É aqui que a música, enquanto atividade social, desempenha um papel essencial. O clichet “a música é uma linguagem universal” existe por uma boa razão. Ela tem mesmo o poder de fazer tábua rasa das diferenças entre um jovem nascido num bairro dos arredores e um jovem privilegiado da escola privada com maior acesso a escolas de música. Em Portugal são cada vez mais os casos de sucesso de internacionalização de produtores e DJs dos bairros do Mocho, de Chelas, Mem Martins, Zambujal e outros. Lá fora a editora Príncipe, que promove talentos que vivem na periferia, brilha ao lado dos maiores artistas de música eletrónica, em clubes e festivais da dita cultura do underground.
Portugal precisa de Maria João Pires, Rui Veloso e Amália Rodrigues, mas precisa também do Marfox, dos Studio Bros, da Nídia e de mais Nennys. A proposta de um espaço de aprendizagem não-formal de música, que assenta na valorização da cultura dos jovens envolvidos, oferece o espaço e o tempo para que eles possam ser produtores da sua própria cultura, construtores da sua identidade. A longo prazo, que desenhem a identidade do país.
Falta em Portugal uma narrativa que veicule que o ensino da música é essencial. Do ponto de vista económico, identitário, sociocultural e até da saúde mental. Queremos formar músicos, apaixonados por música, mas também cidadãos. A educação não-formal funciona nesse sentido. Põe os jovens pensar sobre a música, as artes e a ligação com a vida.
É necessário existirem mais mecanismos de produção e divulgação que permitam dar voz a todos por igual. Na Academia de música do Pedro e da Joana privilegia-se o papel dos participantes enquanto criadores e a criação enquanto atividade fundamental da vivência musical. Nela os processos organizam-se de forma horizontal e colaborativa, a par da realidade atual da criação musical. Em vez de reproduzir Chopin ou Beethoven, vou fazer o meu beat, o meu acorde, a minha rima – dimensão fortemente negligenciada no ensino da música em geral.
Todos nós devemos ambicionar um país cultural, evoluído, reconhecido, valorizado. E como podemos fazer a nossa parte? Envolvendo-nos pessoalmente em projetos que possam fazer a diferença para que a cultura chegue a todos. Foi assim que nasceu a Skoola, a Academia de Música do Pedro e da Joana e de mais de 400 jovens que por lá passarem em dois anos. Um espaço seguro e de liberdade de fruição musical e artística.
As empresas, pelo seu lado, podem fazê-lo através da responsabilidade cultural se lhes importar o legado que deixam. Esse pode ser o arrepio na pele do Zé quando tocou a primeira vez na bateria, o estremecer da voz da Maria quando lhe deram o microfone, a ideia brilhante que o Manel teve na sala de aula depois de participar naquela peça de teatro, a transformação da Liliana porque passou uma tarde cheia de amigos, a confiança do António porque o ouviram no grupo, a lembrança gravada em cada poro da pele deles todos.
Como disse o Ministro da Cultura “Se nós queremos que um dia todos possamos ir à Opera, é preciso que a Escola se aproxime do rap e do hip hop”. E eu acrescentaria e que as empresas assumam o seu papel nesta aproximação.
Directora da Academia Skoola
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.