Há um equívoco em Portugal sobre o que é ser uma democracia parlamentar multipartidária e, acima de tudo, sobre o papel dos governos minoritários nestas. Escutando comentadores, cronistas e até políticos, ficamos com a sensação de que o governo recém-empossado de Luís Montenegro é uma situação invulgar nas democracias avançadas. Isto não poderia estar mais longe da verdade. Infelizmente, o debate público nacional faz-se alheado dos dados empíricos e de leituras mais vastas.

Aqui vai a realidade. Entre 1945 e 2015 houve, na Europa (26 países), 705 executivos formados a partir de legislaturas democraticamente eleitas (isto é, excluindo os chamados governos de gestão, de iniciativa presidencial, caretaker governments, etc). Destes 705 governos, apenas 15% foram governos de maioria absoluta (108 governos). Governos de maioria absoluta são a excepção em democracias de base parlamentar com vários partidos. A razão é quase mecânica: se um sistema político está altamente fragmentado não é fácil que um único partido consiga ter mais de 50% dos assentos de uma assembleia. Mas – e aqui entra o equívoco fundamental – um governo assente numa maioria absoluta não é normativamente superior. Na verdade, como mostram várias obras clássicas de ciência política, os governos minoritários podem até ser mais inclusivos e obrigar os partidos a cumprir mais promessas eleitorais.

Se apenas 15% dos governos europeus assentaram numa maioria absoluta, então os outros 85% são governos assentes em coligações com maioria no parlamento? Não. Esse é o outro equívoco. Para além de governos de coligação e de governos assentes numa maioria parlamentar, existe um terceiro tipo de governo muito frequente na Europa: os governos minoritários. Isto é, governos de um ou vários partidos que não têm a maioria dos assentos parlamentares nem um “acordo de incidência parlamentar” que lhes permita governar como se estivessem em maioria. Por incrível que pareça, é até uma situação muito frequente na Europa. Cerca de 32% dos governos europeus foram governos minoritários, mais do dobro do número de governos de maioria absoluta. Sendo verdade que a tipologia mais frequente (53%) de governos é uma coligação maioritária, também é certo que um terço dos governos Europeus não operam com uma maioria fixa e estável na legislatura. Estes estão longe de ser uma situação invulgar. Historicamente, foram muito frequentes nalguns países, nomeadamente nas democracias nórdicas (na Dinamarca, 91% dos governos desde o pós-guerra foram governos minoritários), mas também foram bem frequentes noutros países como a Itália ou a Irlanda.

Em Portugal, os governos minoritários são apelidados de um rol de adjectivos negativos: são instáveis, temporários e incapazes de governar. Pelo contrário, ninguém observa que, numa sociedade politicamente tão dividida como a nossa, com nove partidos no parlamento e nenhuma corrente política claramente maioritária (nem sequer superior a 30% da população), seria altamente injusto e indesejável um partido operar como se fosse maioritário. Um parlamento dividido representa adequadamente uma sociedade dividida. Ao contrário da famosa expressão sobre a “tirania da maioria”1, as democracias representativas pretendem evitar, acima de tudo, a tirania da minoria. Numa autocracia é possível que um partido ou corrente minoritária da população governe como se fosse maioritária. Os verdadeiros democratas não querem que tal aconteça e não querem impor a sua corrente política como maioritária aos outros, quando na verdade ela não é.

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Infelizmente, os equívocos não se ficam por aqui. A mentalidade maioritária é uma verdadeira praga e infecta outros tiques nacionais, nomeadamente o pensamento binário. Um governo minoritário de um partido não é igual a um governo maioritário do mesmo partido. Um governo minoritário não pode fazer tudo o que quer. Deve, por isso, negociar com as várias forças parlamentares, com geometria variável, tomando decisões políticas que não são iguais às que seriam se o mesmo partido governasse em maioria ou se outro partido governasse sozinho. As eleições legislativas não são uma corrida de cavalos em que aquele que chega primeiro governa como quiser independentemente do resto, numa lógica binária (ganhou/perdeu).

Nas últimas semanas, ouvi várias vezes a tese de que o PS cometeria um acto de suicídio caso decidisse “apoiar” o governo do PSD. Mais uma vez, este é um entendimento profundamente errado das coisas. Ninguém vai “apoiar” ninguém de boa vontade e assinando no programa eleitoral de outro partido. Os partidos vão negociar e, com isso, podem alcançar entendimentos e implementar políticas públicas que de outra forma não seriam alcançadas. E podem, evidentemente, exigir políticas públicas que estejam mais próximas dos seus desejos para o país. Por isso mesmo, em democracias maduras, acontece frequentemente que partidos fora do governo reclamem pelo crédito de algumas medidas pelas quais foram responsáveis. E com comunicação política inteligente é possível transmiti-lo ao eleitorado.

Não há determinismo e inevitabilidade em política. E não conheço evidência empírica sistemática que acordos entre estas e aquelas forças dêem mais ou menos força à direita radical. A todos os que afirmam como lei científica que se o PS fizer alguns acordos com o PSD, isso implica necessariamente o crescimento do Chega, pergunto em que dados se baseiam para afirmar isso. Também não sei como explicam que o Chega tenha crescido de 0% para 18% entre 2019 e 2024, altura em que não houve nenhuma “grand coalition” do bloco central, mas sim governos à esquerda ou de maioria absoluta do PS. Naturalmente, já estamos habituados a pessoas que em todas as tendências políticas vêem confirmações das suas preconcepções ideológicas, mas as tendências sociais e políticas complexas têm causas múltiplas e são muito menos deterministas do que essas pessoas gostam de afirmar convictamente.

Acresce que a lógica binária do chamado modelo de Westminster, baseado na dualidade governo-oposição pressupõe que a oposição é homogénea e que só há essas duas alternativas: governo de um lado, oposição do outro. Naturalmente, esta lógica não se aplica em democracias multipartidárias de oito, nove ou dez partidos. Não há uma única oposição monolítica e homogénea. A “oposição” (melhor dizendo, aqueles que não são governo) são um grupo de deputados com uma enorme diversidade ideológica e que não se opõem ao governo pelas mesmas razões. Por isso mesmo, os governos minoritários, sem coligação ou acordo parlamentar maioritário, precisam de ser flexíveis para sobreviver e construir maiorias diferentes em assuntos diferentes. É o chamado rule by multiple majorities. Afinal de contas, quem observar rigorosamente o primeiro governo de António Costa entre 2015-2019, vê precisamente essas maiorias múltiplas. Costa negociou medidas populares com os partidos à sua esquerda, mas a “geringonça” não foi uma coligação maioritária. O governo de António Costa precisou também, em inúmeros assuntos, do apoio do PSD, que recebeu, de resto (defesa, negócios estrangeiros, assuntos europeus, etc). Sem esse apoio do PSD, o governo de Costa não teria sobrevivido. Como muitos outros governos minoritários pela Europa fora, Costa governou com maiorias múltiplas.

As democracias parlamentares multipartidárias continentais são muitas vezes denominadas de “democracias consensuais” precisamente porque os governos precisam constantemente de compromissos, negociações e consensos. Isto não é mau. Na verdade, é a sua razão de ser. Umas eleições parlamentares pretendem gerar um microcosmo da sociedade. Esta Assembleia da República representa, de momento, a sociedade portuguesa. Cabe aos políticos trabalhar a partir da correlação de forças, interesses e preferências que esta gerou, em vez de sonhar com sociedades imaginárias. Quem o conseguir fazer com competência e imaginação políticas à altura da ocasião poderá vir a colher frutos no futuro.

1 – Na verdade, a “tirania da maioria” é uma expressão enganadora e sobrevalorizada, uma vez que as maiorias realmente existentes raramente se constituem como tão poderosas e homogéneas a ponto de causar os danos efabulados. Os dilemas, dificuldades e perigos mais frequentes das democracias são outros. No entanto, esse assunto terá de ficar para outra altura.