Há 50 anos, na noite de Sexta-Feira, 27, para Sábado, 28 de Setembro de 1974, fui procurado em Lisboa, com algum empenho, por um destacamento do COPCON – Comando Operacional do Continente –, a unidade chefiada pelo brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho.
Não fui, evidentemente, o único: nessa noite, véspera da manifestação da “Maioria Silenciosa”, umas largas centenas de “fascistas”, de “reaccionários”, de “miguelistas”, de “legionários”, de “ex-ministros da Ditadura” ou de meros suspeitos de poderem vir a constituir “um perigo para democracia” foram procurados e detidos por grupos de militares.
Procuraram-me, como disse, com algum empenho: primeiro foram à minha última morada de solteiro, que eu deixara em Janeiro de 1972 mas que constava dos registos da Faculdade de Direito. A gentileza da informação deve ter partido de alguns colegas “associativos”, que não terão querido perder a oportunidade de contribuir para a marcha da revolução, denunciando um culpado de delito de opinião. Tendo eu furado algumas greves, impedido algumas unanimidades e animado alguma oposição ao poder que exerciam na Faculdade (um poder tão ou mais totalitário do que o que os “vitimava” e ao país fora da universidade), como resistir, dois anos depois, a um irresistível “não passará!”?
Imagino que os soldados do COPCON que faziam a rusga também respirassem o ar festivo de Abril, gozando as alegrias de andarem, já não em África, atrás de “turras”, mas na capital atrás de “fachos”. Ah a aura romântica da revolução e a beleza de caçar fascistas!
Mas nessa noite de há 50 anos não encontraram o fascista em questão no quarto alugado da Av. Rio de Janeiro, 46, a morada que estava nos arquivos da Faculdade de Direito. Passaram por isso a interrogar a senhoria, uma velha senhora que, sob pressão, lá lhes deu a morada que ali tinha num convite de casamento.
E para lá seguiram as tropas. Entraram, revistaram a casa, não me encontraram e, ao contrário do que fariam noutros sítios, deixaram tudo onde estava e como estava. Levavam à frente um aspirante miliciano. Com eles ia também um civil – um comissário? – que dava instruções e era ouvido com respeito pela tropa. Seria, muito provavelmente, o Dr. Jean-Jacques Valente.
O estranho caso do Dr. Valente e do Sr. Jean-Jacques
Jean-Jacques Valente era o famoso oficial médico antifascista da Conspiração dos Claustros da Sé, uma conspiração de civis e militares, envolvendo republicanos do reviralho, comunistas e católicos progressistas, todos acolhidos pelo pároco da Sé. Entre os mais dinâmicos animadores da conspiração estivera o capitão José Almeida Santos, Manuel Serra e Varela Gomes. O capitão Nuno Vaz Pinto, monárquico ultramarinista, mais tarde meu amigo e conspirador anti-marcelista, também lá tinha estado.
Como outros conspiradores da Sé, Jean-Jacques Valente foi julgado e condenado. Preso no forte de Elvas, acabou por evadir-se com Almeida Santos, ajudado por um cabo da Guarda Nacional Republicana, António Gil. Seguiram-se meses de fuga e clandestinidade, primeiro em Chaves, depois no Sul, perto de Lisboa. Tudo acabou num huis-clos dramático, com Jean-Jacques e Gil a assassinarem a sangue-frio Almeida Santos. José Cardoso Pires recriou toda esta história em A Balada da Praia dos Cães e José Fonseca e Costa traduziu-a por imagens.
O crime passou-se em 1960 mais ou menos nos termos descritos no excelente romance de Cardoso Pires e no belo filme de Fonseca e Costa e conforme a reconstituição dos factos da Polícia Judiciária. Jean-Jacques Valente e o cabo António Gil tinham matado a sangue-frio o seu correligionário e companheiro de fuga de Elvas: Gil disparara, Valente disparara, mas, como a pistola encravara, Jean-Jacques tivera de acabar Almeida Santos à pancada com as tenazes da lareira.
Ora era precisamente este Dr. Jean-Jacques, o tenaz misericordioso de 1960, o valente bom-selvagem, o comissário político que, na noite de 27 de Setembro de 1974, se passeava com os COPCONS de casa em casa.
Como é que o assassino de um correligionário, um assassino frio e a frio, capaz de acabar barbaramente com um seu companheiro de conspiração e revolução, aparecia, anos depois, nas unidades militares destacadas para fazer prisões políticas – como consultor, como conselheiro, como comissário político, o que fosse?
Mas lá estava ele. Convém acrescentar que, naqueles tempos, tudo era possível: a poesia descera à rua, pintavam-se os muros e a vida de vermelho e passavam-se mandados de captura em branco. Até Jean-Jacques Valente na Quinta Divisão era possível.
O espírito do tempo
Sobre o 28 de Setembro de há 50 anos e para que o leitor consiga entrar no espírito do tempo e veja ou leia para crer, aconselho a leitura do capítulo relativo ao episódio em Textos Históricos da Revolução, com organização e introdução de Orlando Neves (disponível online).
A introdução reza assim:
“A passos lentos, mas quase sempre irreversíveis, a marcha para a destruição da máquina fascista e do aparato capitalista prosseguia […] A espíritos eivados de anquilosamentos passadistas ou a espíritos avidamente interessados em defender os seus privilégios não podia agradar este ambiente geral do País”.
E depois? – perguntará o leitor – Depois,
“o capitalismo e mais uma vez com ele todos os seus naturais aliados, em especial a social-democracia, tentam o golpe espectacular (e sangrento pois estava previsto o derramamento de sangue para que, em nome da «ordem» e da «autoridade», Spínola assumisse o poder absoluto ao decretar o seu desejado estado de sítio)”.
Como “espírito eivado de anquilosamentos passadistas”, não resisti à extensa citação.
O que se seguiu foi o aproveitamento da ingenuidade e confusão de Spínola e dos spinolistas (ou melhor “do capitalismo e de todos os seus naturais aliados, em especial a social-democracia”) para avançar com um, já não hipotético, mas verdadeiro golpe; um golpe travestido de contragolpe, usando como instrumentos a Quinta Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas e o COPCON.
Inicialmente chefiada por Vasco Gonçalves, que logo em Julho 74 a deixaria para abraçar o cargo de primeiro-ministro como “companheiro Vasco”, esta Quinta Divisão controlada e animada pelo PCP tinha, entre outras funções, “detectar desvios no cumprimento do programa do MFA e propor medidas para a sua correcção”. Ficámos também a dever-lhe as campanhas de Dinamização Cultural. E ao lado desta mítica Quinta Divisão estava o ainda mais mítico (mas também bastante real) COPCON.
Passo então a citar o Relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares, mais conhecido por Relatório das Sevícias (também disponível online):
“A partir de 28 de Setembro de 1974, o COPCON surge com poderes ilimitados sobre a segurança e a liberdade das pessoas, arvorando-se até no direito de decidir pleitos, dirimir questões civis, resolver problemas de habitação […] Efectuava ainda apreensões de bens e congelamentos de contas bancárias e decretava medidas limitativas da liberdade, tais como interdição de saída para o estrangeiro, residência fixa, etc.”
Reacção em cadeia
Nessa noite iniciava-se, executada pelo COPCON, uma acção que levaria à prisão de cerca de 300 pessoas (números do Relatório das Sevícias), sem contar com os agentes da PIDE. Eram pessoas ligadas à manifestação da Maioria Silenciosa, ao governo ou a organizações do anterior regime e a “partidos e jornais situados à direita, depois do 25 de Abril”. Em Caxias, era a própria “Reacção em cadeia”, nas palavras do Quito Hipólito Raposo à entrada, ainda no pátio, fazendo da tristeza e da tragédia graça.
Os tais “elementos dos partidos e jornais situados à direita depois do 25 de Abril” foram a chave e a razão da operação; uma típica operação comunista, orquestrada com o apoio dos meios de comunicação social, que foram exaltando o já de si exaltado primeiro ministro Vasco Gonçalves e outros líderes do MFA e espalhando desinformação sobre a “conspiração da extrema-direita” e “o golpe spinolista”. Havia que prender todos os que estavam a pôr em perigo a democracia. Motivo do encarceramento? “Associação de malfeitores”.
Volto à narrativa do Relatório:
“As prisões foram efectuadas por forças militares do COPCON, mas também por grupos civis, ou pelo menos orientados por civis. É de registar sobretudo a intensa actividade desenvolvida por um médico, membro do PCP”.
Lá estava ele no relatório, o Dr. Jean-Jacques Valente, o médico, o comissário político que no dia 27 de Setembro acompanhou os emissários da democracia e da liberdade do COPCON que vieram por mim e por muitos outros nessa noite. Era quase Stevenson: The Strange Case of Dr. Valente and Mr. Jean-Jacques.
A inventona de 28 de Setembro não foi mais do que um pretexto da esquerda comunista e da ala mais esquerda do MFA para, alegando golpe e contra-golpe, poder matar no ninho da serpente a direita que se organizava para, ao abrigo das leis da Democracia e em democracia, se bater por uma solução que permitisse salvar o que pudesse ser salvo no Ultramar e do Ultramar. E defender, na Metrópole, a liberdade contra os seus maiores inimigos de sempre: os comunistas e a esquerda radical.
Como consta do Relatório das Sevícias, as prisões dessa noite, geralmente por instigação de militantes do MDP-CDE, foram acompanhadas de denúncias e de mobilização de multidões. O regime restaurador da democracia e das amplas liberdades conseguiria assim a proeza de exibir em Outubro de 1974 mais presos políticos do que os que lá estavam no dia 24 de Abril de 1974.
Nessa noite, quando da visita ao que julgavam ser o meu paradeiro em Lisboa, eu estava em Carmona como alferes miliciano, na Acção Psicológica. Poucas semanas antes do 25 de Abril tinha trocado com um camarada meu, que estava mobilizado. Sendo então um convicto defensor do Portugal ultramarino, não me passava pela cabeça não servir em África. E como me oferecera mas nunca mais me chamavam, resolvi trocar com um mobilizado.
Em Carmona, no Sábado, começaram a chegar as notícias, esparsas, de que na Metrópole se prendiam “reaccionários” ad hoc. Em Angola, Rosa Coutinho procedia também à limpeza e neutralização de quaisquer movimentos políticos que se desviassem da “linha geral” do MFA, vitorioso em Lisboa.
A partir desse 28 de Setembro preparei a fuga para a única fronteira possível – a do Sudoeste Africano, hoje Namíbia. Na Sexta-Feira seguinte, 4 de Outubro, pus-me a caminho. Seguiram-se quatro anos de exílio – na África do Sul, no Brasil e em Espanha.