Foi, provavelmente, a visão da enésima bancada vazia atrás de uma baliza que ficou ali a maquinar no inconsciente. A noite passada sonhei que encontrava no café o Primeiro-Ministro António Costa. E, entre uma cerveja e duas ou três palavras de circunstância, perguntei-lhe o que pensa fazer em relação à mais recente trapalhada do futebol português: o inefável “Cartão do Adepto”.

Eis um resumo da conversa, mais ou menos como ela (não) aconteceu:

– O senhor Primeiro-Ministro tem de recuar naquela ideia peregrina do Cartão do Adepto. Já teve de safar tanta trapalhada dos seus ministros, vai ter de resolver mais esta.

– Qual é o problema do Cartão do Adepto?

– Bom, por qual começar? Para já, em pleno século XXI, exigir que um cidadão forneça um conjunto de dados pessoais só para ir assistir a um jogo de futebol é um ataque aos direitos, liberdades e garantias constitucionais. Depois, logo agora que os clubes andam a tentar recuperar de um ano e meio de jogos à porta fechada e que os adeptos têm de se sujeitar aos 30 ou 50% de lugares permitidos pela Direção-Geral de Saúde, ainda criámos mais um obstáculo no acesso do público aos estádios.

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– Não podíamos continuar de braços cruzados perante a indisciplina dos grupos organizados de adeptos – disse o António Costa imaginário. O cartão é uma forma de combater o racismo, a xenofobia e a intolerância.

– Eu diria mais, que é paternalismo, totalitarismo e ganância. Não foi o senhor que inventou o Simplex?

– Então, não fui? Concentrámos cinco ou seis documentos num só cartão, entre muitas outras medidas de simplificação da administração pública e da economia!

Então, porque é que agora está a complicar? Acha normal que um cidadão português precise de menos burocracia para entrar na Lituânia do que num estádio da I Liga? Para nos identificarmos em qualquer situação, para irmos às Finanças, para irmos ao médico, para votar – até para viajar pela União Europeia – basta o cartão do cidadão, mas para ir ao futebol precisamos de fazer um cartão específico?

O Cartão do Adepto não é uma extravagância nossa – disse o Primeiro-Ministro no meu sonho, já em tom de orgulho ligeiramente ferido. Outros países já tomaram iniciativas semelhantes…

– E já todos desistiram delas! Só a Itália é que mantém uma regra parecida e, mesmo assim, sabe como funciona? Quando compram o bilhete, as pessoas têm de dar o seu número de contribuinte, até para evitar a revenda. É o que já se faz em certos espetáculos culturais…

– Só isso? Não criaram nenhum cartão?

– Senhor Primeiro-Ministro, se a questão é identificar as pessoas, basta o cartão do cidadão. Mas, se não quer voltar atrás para não perder a face, ao menos faça o cartão em formato digital – e gratuito! O certificado da vacinação contra a Covid-19 é digital, mas o Cartão do Adepto tem de ser físico porquê? A máquina do Estado nem os cartões do cidadão consegue fazer a tempo! Como é que vai criar toda uma nova estrutura só para fazer cartões para o futebol?

– Sim, senhor. Tomo boa nota.

E, no fim, ainda cobram 20 euros?! Por um cartão com validade de três anos?! Os estádios estão vazios, as pessoas não têm dinheiro, mas o Governo ainda arranjou maneira de tirar mais pessoas dos estádios, mais dinheiro às pessoas e inventou mais um imposto sobre o futebol!

Tomo boa nota, repetiu o Primeiro-Ministro, claramente já com pouca vontade de me ouvir.

Só mais uma coisa, senhor Primeiro-Ministro: o cartão é para maiores de 16 anos. Como é que eu vou com os meus filhos ao futebol? Compro bilhete para a central, para gritar golo no meio dos adeptos da casa? Se quer mesmo criar uma zona para as claques, ao menos crie outra para as famílias, para os grupos de adeptos “não organizados”.

Vou falar com o senhor secretário de Estado do Desporto e ver o que se pode fazer.

O seu secretário de Estado, senhor Primeiro-Ministro, duvido que alguma vez tivesse entrado num estádio de futebol antes de ser secretário de Estado. E já que o Presidente da Liga também não lhe diz nada e se limita a acatar uma norma que vai contra todo e qualquer interesse dos clubes, digo-lhe eu: esta portaria não funciona e nunca vai funcionar. Está errada e é preciso acabar com ela ou alterá-la radicalmente.

Sim, senhor. Tomo boa nota – disse ele pela última vez e saiu.

E eu, que sou quase tão irritantemente otimista como ele, acredito que tenha mesmo tomado. Se não então, agora. Os adeptos merecem. Os jogadores merecem. O futebol merece.