Recentemente, o ISCSP-Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas tomou a iniciativa de promover um ciclo de conferências sobre “As Novas Perspectivas para o Futuro da Saúde em Portugal”, incidindo a primeira conferência sobre o tema “O Futuro do Sistema Nacional de Saúde”.

Apesar da pandemia ter centrado todas as atenções na resposta do SNS no combate ao vírus, é fundamental e oportuna, na minha opinião, a discussão quanto ao futuro do Sistema Nacional de Saúde pois, como adiante procurarei fundamentar, já antes da eclosão da pandemia, o SNS apresentava problemas graves que urge defrontar e que serão ainda agravados pelos efeitos da Covid-19 (como, por ex., o crescimento ainda maior das listas de espera para cirurgias e consultas e, de uma maneira mais geral, os problemas derivados da falta de resposta às situações dos doentes não-Covid).

Em termos de enquadramento do tema em discussão. podemos considerar que a finalidade e a missão do SNS é a de concretizar a garantia, expressa na Constituição, da prestação de cuidados de saúde, de forma geral, universal e tendencialmente gratuita, a toda a população.

Esta garantia constitucional não está a ser cumprida para grande parte da população portuguesa, penalizando, em especial, as pessoas mais vulneráveis e desfavorecidas (como adiante fundamentarei), existindo há muito graves problemas que, no acesso, se podem concretizar no seguinte:

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Cerca de três milhões de Portugueses (dados da ASF-Autoridade de Supervisão do Sector dos Seguros, referidos a 31.12.2019) possuem seguros de saúde privados e recorrem generalizadamente ao sector privado da saúde, situação esta que tem registado um crescimento crescente ao longo dos anos (de 2006 a 2019, os seguros de saúde privados cresceram 4% ao ano – dados também da ASF);

Destas cerca de três milhões de pessoas, os seguros de cerca de 1,6 milhões são pagos pelas empresas e as restantes 1,3 milhões de pessoas pagam do seu bolso os seus seguros de saúde privados.

A razão do pagamento dos seguros de saúde feito pelos cidadãos, e também pelas empresas aos seus trabalhadores, onerando os seus custos (e o preço dos bens e serviços que produzem), quando a Constituição garante a prestação gratuita dos cuidados de saúde a todos os Portugueses, só pode ser encontrada (com excepção daqueles que procuram serviços não cobertos pelo sistema público, como, por ex., cuidados dentários) na falta de resposta do SNS às necessidades sentidas pela população na resolução dos seus problemas de saúde no tempo e no modo de que necessitam.

A adicionar a estes três milhões de pessoas existem, ainda, mais cerca de um milhão de pessoas (funcionários públicos e suas famílias) que recorrem generalizadamente ao sector privado da saúde através da ADSE (e outros subsistemas públicos), mediante o pagamento de uma quotização mensal (no caso da ADSE: 3,5% dos seus vencimentos mensais) e que, obviamente, não o fariam se a resposta, gratuita, do SNS fosse a mesma da que recebem no sector privado.

É certo que nos casos clínicos mais complexos e pesados, por falta de condições de resposta do sector privado (ou porque os limites das apólices dos seguros assim o impõem nas doenças prolongadas) existe o recurso ao SNS, mas este facto não afasta a realidade da existência de mais de quatro milhões de Portugueses que têm custos com os cuidados de saúde de que necessitam, quando a Constituição lhes garante essa prestação de forma gratuita (apenas com taxas moderadoras).

Ou seja, no total, cerca de 40% da população procura, de forma generalizada, pagando, os serviços de saúde privados por falta de resposta do SNS (com a excepção referida da procura dirigida ao sector privado, resultante de cuidados não cobertos pelo SNS, como os cuidados dentários).

Estes graves problemas de acesso são ainda manifestos:

  • Nas elevadas e persistentes listas de espera para cirurgias e consultas: por ex,. no final de 2014, existiam 180.477 pessoas em lista de espera para cirurgias e no final de 2019, o seu número aumentou para 252.510 (dados do Relatório de Outubro de 2020 do Tribunal de Contas) e isto apesar do aumento das despesas em saúde (de 8,33 mil milhões de euros, em 2014, para 9,53 mil milhões em 2019 – dados da Pordata). Este é  um problema endémico, nunca resolvido pelo SNS ao longo da sua existência e que penaliza e descrimina, em especial, a população mais vulnerável e desprotegida (as pessoas que têm possibilidades financeiras ultrapassam este problema pagando seguros privados de saúde);
  • No elevado número de pessoas sem médico de família, (no final de 2019, antes da pandemia, cerca de 850 mil Portugueses), problema este que também nunca foi resolvido pelo SNS.

A realidade descrita permite concluir que, ao contrário do que afirmam os partidos de extrema-esquerda, é a ineficiência do SNS que alimenta, em larga medida, o crescimento do sector privado da saúde através da procura que lhe é dirigida pelos cidadãos, porque estes não encontram no sector público a resposta para as suas necessidades de saúde.

A recusa dos partidos de extrema-esquerda, devido aos seus preconceitos ideológicos (e do Governo que deles depende para continuar no poder) em encarar os problemas do SNS e em introduzir as reformas que são fundamentais, acaba por penalizar a população, em especial a mais vulnerável e desprotegida, que não tem  possibilidades financeiras de adquirir seguros de saúde privados (e assim ultrapassar os problemas do SNS). Ou seja, devido aos seus preconceitos ideológicos, os partidos de extrema-esquerda (e o Governo) acabam por penalizar aqueles que dizem defender.

A  adicionar aos problemas de acesso verifica-se também uma elevada ineficiência e desperdício do SNS apesar de, na prática, responder apenas às necessidades de cuidados de saúde de cerca de 60% da população.

Esta elevada ineficiência conduz a que o SNS tenha custos que são muito superiores àqueles que seriam necessários para prestar os mesmos cuidados de saúde à população.

É generalizadamente reconhecido, que esta ineficiência seja da ordem dos 20% a 25% (numa óptica conservadora). Ou seja, tendo presente que as despesas executadas na saúde foram, em 2019, de 9,53 mil milhões de euros (dados da Pordata), a ineficiência atingirá cerca de 1,9 a 2,4 mil milhões de euros.

No “modelo” actual do SNS não existem, na minha opinião, condições e estímulos estruturais e permanentes para dar resposta a estes graves problemas e evitar, no futuro, a repetição dos mesmos.

Neste “modelo” actual do SNS, para a concretização da finalidade do SNS, o Estado assume todos os papéis:

  • Prestador/”Produtor” de cuidados de saúde;
  • Empregador;
  • Financiador;
  • Gestor.

Enquanto “produtor”, o Estado presta os cuidados de saúde através de unidades prestadoras (hospitais, centos de saúde e USFs – Unidades de Saúde Familiares) de oferta monopolista, que captam a procura que lhes é dirigida por critérios administrativos (de residência dos utentes), ou seja, não há, na prática, liberdade de escolha por parte destes.

Esta falta efectiva de liberdade de escolha, conjugada com a ausência de qualquer forma de concorrência ou competição entre as unidades prestadoras (no sentido de induzir melhores resultados/serviços para a população), está na origem da inexistência de estímulos estruturais, vindos do “exterior” das unidades do SNS, para satisfazer as necessidades da população em termos de acesso e prestação atempada dos cuidados, ao mesmo tempo que induz uma elevada ineficiência, já atrás referida.

Um outro papel desempenhado pelo Estado, é o de “empregador” de todos os profissionais de saúde. Estes possuem, portanto, o estatuto de funcionários públicos, o que proporciona uma garantia de estabilidade de emprego e um risco praticamente nulo, por mau desempenho individual, ou seja, a não resposta das unidades prestadoras não tem qualquer impacto na estabilidade de emprego e na situação profissional.

O Estado como “financiador” assegura o financiamento das unidades hospitalares e das unidades de cuidados primários mas, na prática, com a inexistência ou fraca ligação a resultados para a população, em termos de acesso, prestação atempada de cuidados e atendimento, com excepção dos hospitais em PPPs – Parcerias Público-Privadas e das USFs onde os serviços a prestar às populações servidas são contratualizados, e o pagamento pelo Estado é feito em função dos resultados atingidos, existindo, assim, nestes casos, uma ligação estreita entre financiamento e resultados.

O financiamento de qualquer organização prestadora de um bem ou serviço decorre do preço pago pelos clientes/utentes em consequência do reconhecimento, por estes, do valor criado. O não reconhecimento do valor criado (por má resposta da organização, por ex,.) pelos clientes/utentes diminui ou faz cessar o financiamento da organização, ameaçando a sua existência e portanto os postos de trabalho, havendo, assim, um forte estímulo para melhorar o desempenho e satisfazer melhor os clientes/utentes.

Na prestação do “bem público” – cuidados de saúde à população – pelo Estado, este mecanismo não é aplicável nem, portanto, o estímulo vindo do “exterior”, através do financiamento, para melhorar o desempenho e satisfazer melhor os utentes.

Um outro papel desempenhado pelo Estado é o de “gestor” das unidades do SNS (com excepção dos hospitais em PPPs e das USFs – em parte) e dos seus recursos humanos (RH).

Quanto a este último aspecto, há que referir que a gestão pública dos RH é de natureza burocrática, sem reconhecimento do desempenho individual, com influência política (por ex., na nomeação de equipas dirigentes e quadros superiores, cuja actuação, por vezes, é motivada mais por razões de fidelidade do que orientada em resultados para a população) e sujeita a fortes pressões e reivindicações dos sindicatos da função pública, muitas vezes, por razões políticas.

A gestão das unidades prestadoras de cuidados de saúde pelo Estado é, assim, feita num enquadramento contrário à existência de uma gestão por meritocracia, com falta de avaliação efectiva do desempenho individual ligada a incentivos e penalizações, com pressão sindical para promoções (e remunerações) automáticas não ligadas ao desempenho e com baixa eficiência, tudo isto resultando na falta de envolvimento e desmotivação dos profissionais de saúde.

Ou seja, também no “interior” das unidades do SNS não existem estímulos estruturais, permanentes, para uma melhor resposta às necessidades de saúde da população.

A acrescer a esta situação, os mecanismos de gestão são inexistentes, como o Planeamento Estratégico, ou insuficientes e ineficazes, como o Planeamento e Controlo (como foi evidenciado, ultimamente, no planeamento da gestão dos hospitais do SNS durante a pandemia).

A gestão do Estado das unidades do SNS tem sido também caracterizada pela falta de autonomia (em especial das unidades hospitalares), o que leva à impossibilidade da responsabilização das equipas de gestão por objectivos a atingir (quando existem), o que é agravado pelas decisões políticas do Ministério das Finanças quando impõe cortes nas despesas orçamentadas e autorizadas (ou seja, pela imposição das cativações).

Em síntese, os problemas estruturais com os quais o SNS hoje se confronta, e atrás identificados, não encontram uma resposta no “modelo” actual do SNS, por não existirem condições e estímulos estruturais, permanentes, para a melhoria da eficiência e da resposta às necessidades da população:

  • Quer vindos do “exterior”, por ausência de mecanismos de concorrência ou competição induzidos pela liberdade de escolha dos utentes;
  • Quer vindos do “interior”, por ausência de um sistema de meritocracia em resultado de uma gestão burocrática, com influência política, sem incentivos e reconhecimento do desempenho individual;

No âmbito do “modelo” actual do SNS,  a resposta às necessidades da população continuará a degradar-se se não forem introduzidas mudanças estruturais, havendo, assim, na minha opinião, a necessidade inevitável de evoluir para um novo “modelo” do SNS, de forma prática, gradual e reformista, com a introdução de alterações ao actual “modelo”.

Esta evolução do SNS, que defendo, e que apresentarei num próximo artigo, dará, na minha opinião, uma resposta à situação atrás caracterizada, e assentará em duas premissas fundamentais:

  1. A da manutenção da garantia constitucional dada a todos os Portugueses, de acesso geral, universal e tendencialmente gratuito aos cuidados de saúde, ou seja, a população, nesta evolução, não será afectada nos seus direitos de hoje, garantidos pela Constituição;
  2. A do reconhecimento do SNS como um instrumento fundamental do direito à protecção na saúde da população, o qual, através da acção dos seus profissionais de saúde e apesar dos seus problemas (atrás descritos) alcançou resultados notáveis, como, por ex., a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da esperança média de vida.