Domingo de Páscoa – um dia de família. Já terminado o festejo pascal, ligo a televisão e vejo Otelo Saraiva de Carvalho – Óscar – convidado do Governo Sombra, programa emitido pela TSF e TVI24, para falar, pasme-se, sobre o 25 de Abril, a liberdade e democracia. Otelo, esse mesmo, o líder do Copcon, responsável pela emissão de vários mandados de captura em branco e pela criação das Forças Populares 25 de Abril/FP-25A, julgado e condenado no tribunal, pelo assassinato de 17 vitimas inocentes.

Meritório, os autores fazerem um programa sobre o 25 de Abril, a democracia e a liberdade. Muito questionável, o facto de terem convidado a personagem que mais atentou contra esses valores: pelo medo e força das armas – Otelo Saraiva de Carvalho.

Otelo não é um herói, como foi apelidado pelo moderador de sorriso cúmplice no semblante. Heróis foram outros, mesmo que anónimos, mesmo que reconhecidos tardiamente. Heróis foram todos os que defenderam a liberdade e a justiça, que lutando contra Otelo Saraiva de Carvalho, seja contra Copcon, mas principalmente contra as FUP/FP25, anularam a força dos seus ideais e o poder das suas armas. Heróis foram todos os que pagaram com a vida, desde Policias, GNRs, agentes da Direcção Geral do Combate ao Banditismo, juízes, procuradores, altos funcionários do Estado, que cumprindo o seu papel com empenho, dedicação e sentido de dever, defenderam o Estado de Direito. Heróis foram ainda os empresários, gente anónima ou um bebé inocente, morto num atentado à bomba, e classificado pela organização como um erro técnico. Heróis foram também as viúvas, os órfãos, os irmãos, pais, familiares violentados na perda, da qual nunca recuperaram.

E se hoje é possível um programa como o Governo Sombra, foi porque o Copcon de Otelo não vingou. Porque apesar dos vários mandatos de captura em branco, as prisões arbitrárias, existiu um 25 de Novembro, que repôs os valores do Estado de Direito.

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Porque apesar de serem “apenas” 17 vítimas mortais, assassinadas de forma covarde e à queima roupa, sete baleados, felizmente falhados, que não resultaram em vítimas mortais, mais de 20 atentados à bomba, assaltos a bancos, ameaças, intimidações e coações e extorsões, as FP-25A foram desmanteladas, os seus membros presos, julgados e condenados. E, no entanto, apesar de nunca se terem arrependido, pedido desculpa às vítimas ou sequer renunciado à luta armada, foram indultadas e amnistiadas, não chegando por isso a cumprir a totalidade da pena

Otelo, não é um herói da liberdade — não foi por causa dele, que hoje vivemos em liberdade e democracia, mas foi apesar dele, que a conquistámos. As FP-25A não foram o custo da estabilização do regime democrático e muito menos a face negra da revolução. Foram antes consequência das acções lideradas por este homem, que se aproveitou de um Estado fraco para tentar conquistar o poder, pelo medo e a força das armas.

Escusado foi por isso o estilo de avozinho pândego, meio inofensivo e com certeza muito divertido, despertando sorrisos e cumplicidades à direita e à esquerda entre os presentes.

Este homem representa o pior que existiu em Portugal no pós 25 de Abril. Fazer o 25 de Abril não dá créditos para assassinar, intimidar ou extorquir. Imagino que os participantes do programa também saibam isso, mas preferiram ceder ao circo mediático e ao humorismo fácil. O que ganharam em audiências perderam em credibilidade e autoridade.

Convidar o chefe de um bando de assassinos, bombistas e assaltantes de bancos, é em primeiro lugar, ofender as famílias daqueles que perderam um ente querido, mas principalmente é recontar a história da liberdade e democracia. Não o confrontar com o passado das FP-25A é ser cúmplice numa narrativa onde os assassinos são elevados à categoria de heróis e as vitimas de vilões. Pedir-lhe um autógrafo no final, em memória de uma tarde bem passada – como fez um dos comentadores – entra no reino da cumplicidade, conivência e irresponsabilidade.

Ao mesmo comentador, personagem que, desde há anos, me habituei a ler e seguir com interesse, bastante assertivo às permanentes faltas de ética, ausências de sentido de Estado e erros na justiça – o mesmo que pediu um autógrafo ao avozinho pândego, mas nem por isso inimputável, precisa que lhe relembremos um pouco de história.  De facto, o ponto alto do programa é quando Otelo/Óscar diz que esteve preso injustamente cinco anos, ao que o referido comentador, sentado à sua direita, diz “sim, eu sei”. Terá sido um indesculpável lapsus línguae, uma ironia que não captei ou então o maior exercício de hipocrisia que conheci até hoje. Deixo-lhe aqui, alguns excertos que constam do processo público do julgamento e condenação de Otelo Saraiva de Carvalho e seus cúmplices na organização terrorista FP 25A:

  •  “ESTÁ PROVADO que o Projecto Global/FP 25 fundado e dirigido por Otelo Saraiva de Carvalho, Pedro Goulart e Mouta Liz e outros é uma organização terrorista armada…” *
  • “ESTÁ PROVADO que esta Organização terrorista visava a destruição, pelas armas, do regime democrático português, constituindo em Portugal, uma organização de terrorismo urbano….”*
  •  “ESTÁ PROVADO que os réus terroristas se propunham a criar a instabilidade permanente em Portugal, pondo em causa a paz pública e a economia nacional, bem como as instituições do Estado”*

O processo das FP-25A foi o maior falhanço da justiça, desde o 25 de Abril. Os crimes foram julgados e provados em tribunal — apesar da sentença nunca ter transitado em julgado – mas os seus membros não cumpriram a totalidade da pena. Foram indultados e mais tarde amnistiados, por crimes que nunca se arrependeram. A amnistia pode ser jurídica, mas a memória não pode nem deve prescrever.

Filho de umas das 17 vitimas assassinadas pelas FUP/FP 25 de Abril

*Caso FP-25 de Abril –  Alegações do Ministério Público – Ministério da Justiça