Na narrativa mais recente acerca da sexualidade humana – a “identidade de género” – o homem e a mulher deixaram de ser definidos pelo critério objetivo daquilo que são geneticamente – o “ser” determinado fisicamente – e passaram a definir-se pelo “sentir ser”, ou o “descobrir ser”, que conduz a um critério subjetivo das inclinações ou tendências, que deixaram de depender da constituição física de cada um.
É evidente que este “descobrir ser” pode mudar ao longo dos tempos, tal como se alteram as circunstâncias, apetências ou motivações: “as opiniões mudam, as pessoas evoluem”, pelo que “não temos de ser necessariamente uma coisa ou outra”, podendo tornar-nos um emaranhado de coisas consoante o que se vamos descobrindo em nós, “que pode ir mudando conforme a vida vai”. O importante é não “desperdiçar caminhos, oportunidades e experiências”.
Nesta maneira de olhar a sexualidade, a repressão de tendências, quaisquer que sejam, leva à infelicidade e à homofobia. O remédio é assumir tudo aquilo que nos atrai: lutar contra os “demónios da repressão em nós” é o caminho para a felicidade, enquanto “o pecado é ser-se intolerante ao amor”.
Esta narrativa constitui uma revolução antropológica, na medida em que o Homem (no sentido de humanidade, homem e mulher) deixa de ter um modelo, um objetivo moral de cumprimento daquilo que é indicado pelo seu próprio corpo, e passa a deixar-se levar por todas as tendências que descobre, quaisquer que elas sejam, e qualquer que seja a altura em que as sinta. Basta que apeteça.
Deixa-se de lado o “ser” – que implica lutar contra as tendências opostas àquilo que já se “é” – e passa-se ao “descobrir ser”, à aceitação inquestionada de tudo o que se descobre em si, sem balizamento ou correção de comportamento tendo em vista um objetivo. Há apenas transigência perante as tendências, perante aquilo que se descobre.
Deixa de haver um certo ou errado, porque tudo o que se “descobre em si” está certo.
Nesta revolução, talvez sem se aperceber, o Homem perde a noção de liberdade. Se o objetivo é seguir tudo aquilo que descubro em mim, fico preso dos meus desejos, paixões e inclinações. Não tenho liberdade para seguir outro caminho, porque simplesmente não há outro caminho senão seguir tudo aquilo que descubro, sem um critério de discernimento sobre o que é certo ou errado.
No entanto, mais ainda do que a perda da liberdade, o Homem perde a ideia de si próprio. Condenado a seguir os seus instintos, perde a noção de ter uma meta, um objetivo, não sabe para onde vai, não tem onde chegar, e não sabe o caminho. É um ser desestruturado, que desistiu de encontrar um significado para a realidade e de se encontrar a si próprio através do esforço para alcançar o cumprimento de si.
Ao negar a si próprio a possibilidade de se construir a si mesmo, segundo a natureza daquilo que é, de cumprir o que tem indicado no seu código genético, o Homem aliena o mais importante da sua existência, a sua criação mais sublime, aquilo que é a obra-prima de cada um de nós: a da sua própria criação. Recusa a possibilidade de se edificar a si próprio, perdendo-se num enredado de caminhos obscuros que o afastam da sua essência e, assim, se transfigura num “marinheiro sem mar”, como no magistral poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (publicado no portal Escritas.org):
Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade
Todas as cidades são navios
Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios
E ele vai baloiçando como um mastro
Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.
Nas confusas redes do seu pensamento
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento
E sobe por escadas escondidas
E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro
Vai nos contínuos corredores
Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.
Porque ele tem um navio mas sem mastros
Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros
Porque o seu caminho foi perdido
O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres
E é em vão que ele se ergue entre os sinais
Buscando a luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há nos cais
Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto
As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas
Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas.
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas
E o espírito do mar pergunta:
«Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazio
De ondas brancas e fundas
E de verde frio?»
Ele não dormirá na areia lisa
Entre medusas, conchas e corais
Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão
Porque ele se perdeu do que era eterno
E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade.