Muito se tem escrito sobre a inteligência artificial e os seus impactos. Na verdade, muito se tem escrito sobre sistemas capazes de processar e gerar informação usando algoritmos e modelos estatísticos, sistemas esses que estão longe de ser inteligentes, já que lhes faltam, por exemplo, as capacidades de compreensão ou de consciência inerentes à inteligência humana.
Mas aceitemos chamar a estas tecnologias «inteligência artificial».
Muitas pessoas salientam o imenso potencial da inteligência artificial para libertar o ser humano de atividades repetitivas e desgastantes, como podemos verificar sempre que ligamos para uma linha de apoio e somos atendidos por um assistente virtual (raramente dotado de suficiente inteligência para nos ajudar, mas adiante). Ou enaltecem a capacidade da inteligência artificial para processar grandes quantidades de informação e suportar processos de tomada de decisão baseados em dados, de que são exemplo os sistemas capazes de analisar imagens de raio X e propor um diagnóstico, por vezes mais acertado do que o proposto por um olhar humano especializado.
Alunos de todos os níveis de ensino recorrem a ferramentas de inteligência artificial para rapidamente fazerem os trabalhos escolares, e usam-nas como argumento para demonstrar como o ensino está desatualizado, ao lhes ser pedido que adquiram conhecimentos que eles podem obter, sem esforço, a partir de um telefone móvel.
Outras pessoas avisam sobre os perigos da inteligência artificial. Chamam a atenção para o facto de serem sistemas que apenas processam informação, sem outro espírito crítico para além do que advém da maior probabilidade de a resposta estar certa, tendo em conta os dados a que o sistema tem acesso. Ressaltam a vulnerabilidade da inteligência artificial a manipulações e enviesamentos, já que dependem em absoluto dos dados que lhe são disponibilizados. Contrapõem ao argumento de que o uso generalizado das ferramentas garante a diversidade dos dados com o facto de o acesso não ser igual para todos.
Os professores temem que os seus alunos não se desenvolvam até ao máximo do seu potencial ao seguirem pelo caminho mais fácil, confiando que sempre encontrarão uma solução para os seus problemas num qualquer dispositivo com acesso ao mundo virtual.
Quem solucionará os novos problemas, para os quais os dados existentes não dão resposta? Terá a inteligência artificial capacidade para gerar novo conhecimento? Será esse novo conhecimento confiável e eticamente aceitável?
Será este mais um artigo sobre inteligência artificial, concordo; quero, porém, apresentar esse tema da perspetiva das tecnologias de apoio e do potencial impacto da inteligência artificial na vida das pessoas com deficiência.
Seguindo a definição da Organização Mundial de Saúde, as tecnologias de apoio são os produtos e sistemas e serviços afins que permitem e promovem a inclusão, participação e envolvimento de pessoas com deficiência, populações envelhecidas, e pessoas com doenças crónicas na família, na comunidade e em todas as áreas da sociedade, incluindo as esferas política, económica e social.
Aí se englobam, desta forma, todas as tecnologias que permitem reduzir o hiato entre as capacidades de uma pessoa e as capacidades necessárias para realizar uma dada atividade. Essa redução pode ser conseguida diminuindo os requisitos da atividade (por exemplo, aumentando o tamanho da letra em que é apresentado este artigo); aumentando as capacidades da pessoa (imagino que alguns dos leitores estejam a usar óculos para aumentar as suas capacidades visuais); ou alterando a forma como é realizada a atividade (por exemplo, usando uma aplicação que converta texto em fala para ouvir este texto em vez de o ler).
Exemplos imediatos de tecnologias de apoio são os já referidos óculos e as aplicações para conversão de texto em fala, as cadeiras de rodas, as rampas de acesso para vencer lanços de escadas, os sistemas de comunicação aumentativos e alternativos (recorda-se do sistema usado pelo Stephen Hawking para falar?).
Muitos dos milhares de produtos de apoio existentes foram desenhados tendo em vista a sua utilização por pessoas com deficiência, mas muitos outros foram projetados tendo em conta princípios de desenho universal. Por exemplo, os sistemas operativos dos nossos telefones e computadores disponibilizam opções de acessibilidade que facilitam a sua utilização por um leque alargado de pessoas (entre outras opções, podemos alterar o esquema de cores, o tamanho com que é apresentada a informação visual, ou interagir usando comandos de voz). Na verdade, qualquer pessoa pode beneficiar do uso de um produto de apoio, seja em atividades comuns (usar uma rampa para aceder a um edifício empurrando um carrinho de bebé), seja numa dada situação particular de vida (após uma intervenção cirúrgica em que a pessoa necessite de um sistema de suporte à respiração, ser-lhe-á útil um sistema de comunicação aumentativa e alternativa para expressar necessidades, vontades, sentimentos).
São grandes as expetativas relativas ao potencial impacto da inteligência artificial nas tecnologias de apoio.
Pensando, desde logo, nos modelos de processamento de linguagem natural, de que o famoso ChatGPT é exemplo, não é difícil imaginar aplicações que podem melhorar a vida das pessoas com deficiência. As capacidades de análise do contexto da comunicação destes sistemas podem permitir que as predições de texto usadas em ferramentas de comunicação aumentativa e alternativa (e também nos nossos telemóveis quando estamos a escrever uma qualquer mensagem) forneçam sugestões de palavras mais acertadas, permitindo uma geração mais rápida das mensagens e aumentando a fluidez da comunicação. Ou podem modelar a forma como as mensagens são verbalizadas pelo sistema, usando variações de entoação ou intensidade para expressar emoções.
A capacidade de perceber a linguagem natural permite também que os sistemas possam ser controlados usando apenas a voz (se nunca o fez, desafio-o a ativar o assistente de voz – Siri, Bixby, ou outro – no seu telemóvel e “pedir-lhe” para ligar para alguém da sua lista de contactos).
Existem já aplicações que usam algoritmos de inteligência artificial para interpretar e perceber informação visual, permitindo, por exemplo, apontar a câmara do telefone para um objeto e obter uma descrição verbal do mesmo, útil para pessoas cegas. Notícias recentes mostraram-nos pessoas paraplégicas que recuperaram a mobilidade controlando um exosqueleto através da geração de padrões de atividade cerebral que eram interpretados por sistemas de inteligência artificial.
Mas será que estas expetativas serão realizadas deixando a evolução seguir o seu curso natural? Joe Gerstandt, consultor e comunicador nas áreas de diversidade e inclusão, diz-nos que ou intencionalmente, deliberadamente e proactivamente incluímos ou involuntariamente acabaremos por excluir. Se os dados usados para treinar os sistemas de inteligência artificial não incluírem informação gerada por pessoas com deficiência, como podemos esperar que estes sistemas promovam a sua inclusão? Se não envolvermos as pessoas com deficiência no projeto de novos sistemas, como co-designers e não como apenas como utilizadores que testam soluções quase-finais, como podemos ambicionar que sejam desenvolvidas novas tecnologias que vão ao encontro das suas necessidades?
Para uma parte da população, a disponibilidade de uma ferramenta de inteligência artificial pode ser conveniente, mas para uma pessoa com deficiência essa mesma ferramenta pode ser a diferença entre poder, ou não, realizar uma dada atividade de forma independente. Isso eleva os requisitos de conectividade, já que, dado o peso computacional das ferramentas, elas recorrem por regra a algoritmos que correm na nuvem. Aumenta também a necessidade de seguir princípios éticos rigorosos no desenvolvimento de produtos confiáveis e que respeitem os direitos das pessoas com deficiência. É necessário garantir que os produtos desenvolvidos são acessíveis a todos, independentemente das suas capacidades físicas, cognitivas ou económicas.
Estes desafios só serão vencidos com uma perspetiva multidisciplinar, envolvendo investigadores, desenvolvedores, legisladores e as próprias pessoas com deficiência. Confesso que não estou muito otimista já que não observo um esforço intencional, deliberado e proactivo para que a inteligência artificial promova a inclusão de pessoas com deficiência. Mas ainda estamos a tempo de corrigir o caminho!