Os casos da semana e a instabilidade do actual governo revelam um impasse governativo. Se, por um lado, o ritmo de desintegração e o vazio programático do executivo indicariam que alguma coisa deveria mudar num futuro próximo, por outro lado, o ciclo do mandato eleitoral, apoiado numa maioria parlamentar de um só partido, indica precisamente o contrário – que nada irá mudar significativamente nos próximos três anos. Nenhum partido político abdica voluntariamente de poder. Estamos, portanto, num impasse governativo.

No entanto, quero aqui falar de um outro impasse, esse, sim, bastante mais profundo e uma das causas centrais dos problemas do país. Não me refiro ao impasse económico, também ele real e preocupante, mas sim ao impasse do sistema partidário português. Este não é fácil de explicar, mas pode ser resumido em duas questões: qual deve ser a posição dos partidos tradicionais em relação a um partido de direita radical? E, em segundo lugar, será saudável para a democracia representativa que um partido político domine o sistema partidário, eternizando-se no poder? Para ser funcional, o sistema partidário português necessita de resolver estas duas questões em simultâneo.

Em 2019, o Chega tornou-se o primeiro partido de direita radical com representação parlamentar em Portugal, uma clara importação tardia de uma tendência europeia com vários anos. O partido e os seus protagonistas mimetizam de forma evidente temas e estilos utilizados noutros países por figuras da sua família política. Muitas vezes, tal mimetismo excessivo soa até artificial. No entanto, há que reconhecer que a estratégia foi bem-sucedida. Desde a sua criação, este partido não parou de crescer, tornando-se a terceira força política nacional nas eleições de Janeiro de 2022, posição que as sondagens actuais indicam ser relativamente estável.

Perante isto, importa analisar as reações dos vários partidos dos outros quadrantes políticos. Os partidos da extrema-esquerda tradicional – Partido Comunista e algumas facções do Bloco de Esquerda – utilizam o aparecimento de um partido de direita radical como forma de reclamarem para si o legado do 25 de Abril revolucionário contra o “fascismo”. Tentam ainda colar toda a direita moderada à “extrema-direita”, nomeadamente o hiperliberalismo económico da Iniciativa Liberal, numa tentativa de manter vivo e relevante, por oposição, o marxismo tradicional, num mundo onde este já se encontra ultrapassado, volvidos 33 anos sobre a queda do muro de Berlim.

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A esquerda identitária, onde incluo o BE, Livre, PAN e alguma facções do PS, beneficia na mesma proporção do crescimento da direita identitária, leia-se, o Chega, pois, tal como todas moedas têm duas faces, todas as clivagens políticas têm dois lados. Por essa razão, costumo dizer a todos os activistas e interessados políticos: “Cuidado com a clivagem que desejas politizar. Ela gera sempre uma reacção e a politização do outro lado.” Neste caso, quer a esquerda, quer a direita identitárias, embora situadas em lados opostos, beneficiam da politização dos mesmos temas, nomeadamente da imigração, a sexualidade, o nacionalismo e cosmopolitismo, tradição e mudança. Note-se que não estou a fazer juízos de valor sobre que temas são “mais importantes” – na verdade, creio que a saliência de cada tema deve variar consoante o contexto vivido em cada país, em cada momento. Mas esta opinião não é partilhada por activistas identitários de ambos os lados, que acham que todos os assuntos e problemas são redutíveis a questões de identidade cultural. Nas palavras de E.E. Schattschneider: “A mais importante estratégia política é aquela que tenta alterar a dimensão do conflito.”

O PS e o PSD, como principais partidos dos seus respetivos quadrantes e principais partidos governativos, necessariamente respondem tendo em conta outras considerações. A estes não interessa apenas os temas da agenda política, mas também a dimensão executiva. Assim, o PS utiliza o crescimento do Chega como modo de fomentar o chamado “voto estratégico” em si próprio: se os eleitores não querem que o Chega participe ou apoie um governo de coligação de direita, então necessitam de votar no PS, a única alternativa de governo viável. Se o Chega é uma ameaça à democracia, então o PS é o único garante da continuação da democracia em Portugal e da preservação do legado moderado e pluralista do regímen iniciado em 1974. Em Janeiro do ano passado, esta mensagem resultou tão bem que apanhou o próprio António Costa de surpresa (de tal modo que agora não sabe o que fazer com a maioria absoluta). É muito provável que o PS continue a utilizar esta mensagem em eleições futuras, não só como forma de esvaziar a sua esquerda, mas também como forma de atrair o centro político, eternizando-se no poder.

Em contrapartida, o PSD não sabe o que fazer. Está claramente perdido. Por um lado, muitos políticos do partido são verdadeiramente contrários ao programa e estilo do Chega e afirmam ser necessário realizar um cordão sanitário contra a extrema-direita. Nunca o PSD deverá ir para o governo com o Chega e deve não só distinguir-se deste, como dar-lhe pouca importância. Esta posição, ao contrário do que possa parecer, não é apenas “idealista”, mas também estratégica: se um partido de centro-direita acomoda demasiado bem a direita radical, então arrisca-se a um sorpasso ou pelo menos a perder grande parte do seu eleitorado para esse novo partido (“o original é sempre melhor do que a cópia”). No entanto, outros políticos e quadros do PSD estão preocupados com esse cordão sanitário e temem os seus resultados concretos: se o PSD tem cerca de 10% do eleitorado à sua direita com quem nunca se pode coligar, então será muito difícil conseguir voltar a governar, pois tal implica conseguir uma maioria absoluta sozinho ou apenas com a IL. De forma simétrica, podemos observar como o partido Socialista, entre 1976 e 2015, enquanto teve 10 a 15% dos votos à sua esquerda “incoligáveis”, foi quase sempre um partido minoritário, governando quase sempre em minoria com o apoio tácito de partidos ou deputados de centro-direita. Parece improvável que o PS esteja disposto a adoptar a mesma postura perante futuros governos minoritários do PSD.

Qual é, então, a solução para este dilema? Por incrível que possa parecer, não somos os primeiros a depararmo-nos com este problema. Quase todos os países da Europa Ocidental lidaram de uma forma ou de outra com esta questão nas últimas três décadas. E qual é a lição? Não há uma solução, mas há várias experiências com as quais podemos aprender.

Em alguns países, nomeadamente países continentais que utilizam sistemas de representação proporcional e que, por isso, têm uma norma de governos de coligação, como a Dinamarca, a Holanda, a Suécia, a Áustria, a Suíça, a Itália e a Noruega, partidos de direita radical participaram em coligações governamentais ao longo das últimas décadas. Qual o resultado? Claramente, nenhum destes países deixou de ser uma democracia. No entanto, há consequências. Nalguns países, como a Itália e a Áustria, a normalização dos partidos de direita radical levou, mais cedo ou mais tarde, à sua transformação em principal partido de direita. Em termos de políticas públicas, a investigação mostra-nos que governos de coligação que incluam partidos de direita radical, ao invés de somente partidos de outras direitas, têm menor probabilidade de realizar cortes ao Estado Social e menor probabilidade de realizar políticas de desregulação. Isto é, são menos liberais do ponto de vista económico do que a restante direita. No entanto, quero salientar que as experiências e conteúdo programático dos partidos de direita radical em análise poderão ser significativamente diferentes do conteúdo programático dos novos partidos de direita radical na Península Ibérica, Vox e Chega, sobre o quais ainda não temos dados. Por outro lado, em termos de políticas públicas de imigração e Direito, governos que incluam partidos de direita radical são claramente mais inclinados a retirar direitos sociais a imigrantes, mas a evidência em relação a políticas de imigração, cidadania e asilo é mais incerta, quando comparados com governos da direita tradicional (provavelmente devido ao efeito de contágio).

Outros países, nomeadamente os países que utilizam sistemas maioritários, como a França e o Reino Unido, indicam-nos outro tipo de caminho em relação à direita populista radical. Se, por um lado, no Reino Unido, um partido como o UKIP parece ter tido uma vida curta e dificultada pelas regras eleitorais, também é verdade que influenciou de forma indiscutível o grande partido de direita tradicional, o Partido Conservador. Isto é, apesar da manutenção do “cordão sanitário” governamental em relação a partidos de direita radical, muitas das políticas do UKIP contaminaram a ala mais populista dentro do partido Conservador. O resultado foi, entre outras coisas, o Brexit. Em contrapartida, com o seu sistema de duas voltas propositadamente criado para conter a direita radical, França conseguiu sempre, até hoje, excluir a direita radical do poder. No entanto, tal exclusão sistemática poderá ter levado ao crescimento contínuo das margens do (anti) sistema político. A decisão não é fácil.

Finalmente, o caso mais especial: a Alemanha. Aqui, devido à experiência histórica com a extrema-direita Nazi, mas também com a Alemanha de Leste, os partidos do “sistema” sempre mantiveram, e continuam a manter, um claro “cordão sanitário” em relação à direita radical (AfD) e à esquerda radical (Die Linke). Em Portugal, muita gente de esquerda gosta de salientar e utilizar este exemplo como caminho a seguir pelo PSD. No entanto, esquecem-se que, para que este caminho seja possível, é necessário que todos os partidos não-radicais de esquerda e direita estejam dispostos a negociar, governar e deixar governar, uns com os outros. Isto é, o centro-esquerda (SPD) aceitou durante muitos anos ser parceiro governativo do centro-direita (CDU), como também aceita ser parceiro dos Verdes e dos liberais de direita. Por seu lado, os Verdes estão dispostos a entrar em coligações com partidos de direita (a CDU e o FDP). Só é possível manter cordões sanitários se todos os partidos do sistema estiverem dispostos a dialogar e a governar com partidos do quadrante político oposto. Em Portugal, seria necessário que PS, PSD, IL, Livre e PAN estivessem dispostos a entrar em coligações ou acordos parlamentares com qualquer outro partido desta lista. Não é possível manter um cordão sanitário e uma mentalidade de blocos políticos estanques e hostis ao mesmo tempo.

Como vai Portugal sair deste impasse do sistema partidário? Confesso que a minha preferência vai para a solução que apontei no último parágrafo. No entanto, sei também que, na realidade, o futuro irá ser ditado por acontecimentos de momento imprevisíveis (e muitas vezes exógenos) e pelas decisões humanas e sub-ideais das nossas elites políticas, socializadas num pequeno mundo partidário isolado e numa cultura local pouco letrada e pouco imaginativa.