Os líderes políticos da Europa atual raramente partilham reflexões profundas sobre a natureza fundamental dos sistemas políticos contemporâneos. É ainda mais apreciado quando o fazem.
Ao contrário dos académicos, cujo envolvimento com o mundo da política continua a ser em grande parte teórico, os líderes políticos têm uma experiência em primeira mão das suas realidades cruas. Quando combinam os seus conhecimentos práticos com observações analíticas, levam-nos a contemplar proveitosamente os desenvolvimentos políticos para além das nossas preocupações imediatas.
Talvez tenha sido esse o objetivo do discurso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no Encontro Nacional de Jovens, no início de setembro deste ano. Dirigindo-se aos jovens que deverão moldar a política portuguesa e europeia do futuro, o Presidente afirmou: “Estamos no fim de um ciclo histórico e no início de outro, no mundo, na Europa e em Portugal. [Há, de facto, um sentido de transformação, e as guerras aumentam nestes períodos de incerteza e impressionabilidade […]. Os sistemas políticos europeus estão em crise profunda, [porque estes sistemas] foram todos concebidos para outro tempo, e por inércia perduraram. […] E a alternativa ao velho é o velho, velho em ideias, velho em estruturas, velho em organização, velho em pessoas, e isso é um problema na Europa”.
Interregno no ar
Há, de facto, uma sensação de interregno no ar, um sentimento de estarmos presos entre duas ordens – uma velha e a desaparecer, a outra nova mas ainda não totalmente imaginada.
Neste sentido, as actuais guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, juntamente com a ameaça iminente de um conflito sobre Taiwan, não são apenas perturbações geopolíticas. São as lutas da velha ordem que se agarra ao seu poder sociocultural assente em realidades familiares e reconhecíveis.
O interregno atual é um ponto de viragem naquilo a que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou “modernidade líquida”, em que as relações são fluidas, as identidades são flexíveis e as estruturas tradicionais são enfraquecidas ou dissolvidas.
Os governantes autocráticos que conduzem as convulsões geopolíticas contemporâneas procuram pôr fim ao atual estado de incerteza através da sua escalada, para empurrar os alegados defensores da “liquidez” para o ponto de pânico, obrigando-os, em última análise, a exigir o regresso à velha ordem estável.
Se estes autocratas tivessem um slogan honesto, este poderia ser “Make Modernity Solid Again”.
Não estão sozinhos. Os partidos de extrema-direita, que conquistam vitórias atrás de vitórias em todo o Ocidente, promovem a ideia de que as identidades nacionais homogéneas oferecem um refúgio para aqueles que lutam contra as ansiedades ligadas ao multiculturalismo e que culpam a democracia liberal.
Estes partidos aproveitam uma tendência humana natural para temer a incerteza: quando confrontados com realidades em rápida mudança, o nosso instinto leva-nos a gravitar em torno de ambientes e identidades familiares.
O “cabo do medo”
Os democratas liberais oferecem a sua própria política do medo: o medo de que os autocratas de direita/esquerda cheguem ao poder nas sociedades ocidentais. Mas a questão-chave para a democracia liberal não é se ganha o “cabo do medo” contra a extrema-direita – é, antes, se consegue navegar com sucesso o atual interregno e ser um alicerce político do novo ciclo histórico, pelo menos na Europa.
Há poucas dúvidas de que as alternativas autoritárias autocráticas de direita/esquerda às incertezas do futuro são concetualmente antigas. Embora possam causar perturbações temporárias – partindo do princípio de que não nos destroem a todos no processo – não podem inverter o curso inexorável da história humana, que é impulsionado pelos avanços tecnológicos e não por decisões políticas.
Mas, embora a democracia liberal possa ajudar a tornar mais pacífico o período de transição para uma nova era, também ela parece ser uma resposta desactualizada aos desafios do futuro, e falta-lhe fundamentalmente o pathos para lançar as bases ideológicas de uma nova ordem.
O liberalismo foi originalmente uma ideologia revolucionária. Surgiu em oposição – e acabou por desmantelar – as monarquias absolutas, o feudalismo e o domínio da Igreja. A vaga de democratização liberal que se seguiu na Europa pôs fim aos impérios e deu origem aos modernos Estados-nação. Após a Segunda Guerra Mundial, ajudou a reconstruir a Europa Ocidental.
No final da década de 1980 e início da década de 1990, muitas nações da Europa Central e Oriental adoptaram a democracia liberal, motivadas pelo desejo de liberdade política e pela esperança de alcançar a prosperidade material verificada no Ocidente liberal-democrático.
Nas regiões pós-socialistas da Europa, as eleições livres foram tão importantes para impulsionar a democratização como a abertura do McDonald’s e a disponibilidade legal de calças de ganga americanas da moda.
Mas o que resta agora do poder transformador do liberalismo se as pessoas, mesmo no Afeganistão governado pelos talibãs, podem agora usufruir dos benefícios materiais do Ocidente sem adotar princípios democráticos?
Lembram-se de um velho sketch de Rowan Atkinson em que ele parodiava um político conservador britânico a discutir a imigração? “Eu gosto de caril, a sério! Mas agora que temos a receita, há realmente alguma necessidade de os [indianos e paquistaneses] ficarem?”.
Hoje em dia, acontece com demasiada frequência que a democracia liberal são esses “imigrantes indianos e paquistaneses” que algumas pessoas não querem que fiquem.
Marcelo Rebelo de Sousa não sugeriu soluções radicais para os desafios do ciclo histórico ainda por explorar, mas o que parece decorrer dos seus argumentos é que uma alternativa verdadeiramente nova aos sistemas políticos actuais – sejam eles autoritários ou democrático-liberais – surgirá em oposição direta a eles. Uma alternativa genuína pode basear-se no ambientalismo neo-pagão ou no trans-humanismo assistido por IA, mas só o tempo dirá que forma e feitio assumirá.