Tenho seguido com curiosidade o progresso e a multiplicação de observatórios. Dizem os dicionários que um observatório é “o lugar de onde se observa; um edifício científico equipado para a observação de determinados fenómenos”. É, pois, de Ciência que falamos.

De Ciência e de Progresso, porque longe vão os costumeiros observatórios de Greenwich, da Ajuda ou da Serra do Pilar. Os modernos observatórios sociais já não observam corpos celestes: observam fenómenos patológicos próximos com rotas pré-determinadas. Para tal, recorrem a uma nova estirpe de auxiliares de acção científica: os “activistas” – investigadores reconhecidos, não só pelo seu rigor e isenção, mas também pela sua excepcional capacidade de produzirem verdades científicas a partir da identificação dos pensamentos, palavras, actos e omissões de todo o ser ou povo que, alimentado exclusivamente por fake news, apresente sintomas ou laivos opressivos e difunda patologias ideológicas e comportamentais que ameacem a Democracia e a Humanidade. É esta a verdade científica.

E quem somos nós para contestar a Ciência? Nós, os que, perante os admiráveis avanços da investigação e a excelência dos novos investigadores, oscilamos entre formas de vida, de acção e de pensamento ora ainda primitivas ora já fossilizadas e que, por isso, não estamos nem nunca estaremos cientificamente equipados ou minimamente habilitados, subsidiados e homologados para sermos mais do que o fenómeno observado. E muito menos para questionar o asséptico “lugar de onde se observa” e de onde agora se “faz ciência” – que, como todos sabemos, é um rigoroso “não lugar”, escrupulosamente isento de vírus ideológicos e imune a todo o preconceito. Não está ao nosso alcance escrutiná-lo. É qualquer coisa de científico.

E quais são então os fenómenos patológicos fixados por estes muitos observatórios; os fenómenos que, por afectarem e afligirem a nossa sociedade e por terem, bruscamente, invadido o nosso país, requerem observação e, em tempo de pobreza económica, social, cultural e moral, urgente canalização de recursos estatais? São, evidentemente a xenofobia, a homofobia, a transfobia e outras fobias do género. As observações e os dados científicos recolhidos e tratados neste âmbito seguem depois para as entidades competentes para que semelhantes acidentes e incidentes ou entes e entidades possam ser devidamente expurgados.

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Uma reedição da Real Mesa Censória com ecos do orwelliano Grande Irmão? Não. Ciência pura. Simples Progresso. A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na era Digital.

O Observatório da Extrema-Direita

Descobri, com atraso, que entre estes novos observatórios dedicados às várias fobias há um “Observatório da Extrema-Direita”. Seria a “extrema-direita” a observar? Não, que a extrema-direita não tem cientistas nem estudos para ter observatórios: a “extrema-direita” era o fenómeno observado. A única diferença em relação às outras fobias observadas era que aqui a fobia chegava, não do universo alvo, mas do “lugar de onde se observa”, ou do não-lugar onde se aloja a isenta comunidade científica que se confessa consideravelmente alarmada e que por isso se propõe analisar o fenómeno sem outras agendas que não a Verdade e a Ciência.

Curiosamente, o fenómeno, ainda antes de ser entalado na lamela e encaixado no microscópio, já lhes chegara rotulado. E – ou pela urgência de encontrar uma vacina para tão grave patologia ou porque, também aqui, os académicos que integram o observatório contam com o precioso auxílio da nova estirpe activista de auxiliares de acção científica – as perguntas de investigação começam logo por abreviar processos:

O que é a nova extrema-direita? O que tem de ‘velho’? Quem são os seus protagonistas que se dizem fora do sistema e vivem do sistema? Qual é a sua agenda e os meios de propagação das suas ideias? De que forma se alimenta do racismo, da xenofobia e do conservadorismo?” E mais adiante: “Interessa-nos discutir também quem cria as fake news e porque é que a extrema-direita cresce com elas”.

O processo fica, assim, sabiamente abreviado logo nas perguntas de investigação, com o relatório praticamente pronto a ser enviado às autoridades competentes.

Há quem diga que “o lugar de onde se observa” pode, eventualmente, influenciar a investigação, os pressupostos, a amostragem, as conclusões, e que estes observadores poderão, quem sabe, ter outra agenda que não a Verdade e a Ciência. Talvez de esquerda ou de extrema-esquerda. Mas parece que não, que são mesmo isentos. E que não o sejam: é materialismo científico…e os observatórios estão cientificamente equipados para observar e não para serem observados.

De qualquer modo, os cientistas do observatório estão apreensivos com o fenómeno em análise. E não será para menos. Aquilo a que cientificamente chamam “extrema-direita” (a saber, um polvo que se diz fora do sistema mas que vive do sistema, que se alimenta de racismo e xenofobia ao pequeno almoço, ao almoço e ao jantar e que cresce com as fake news que cria) avança a olhos vistos e em sítios antes impensáveis: na América populista que elegeu Trump em 2016, no Brasil de Bolsonaro, nos conservadores sociais e identitários da Hungria e da Polónia, nos italianos de Salvini e da Meloni; e até em França, onde Marine Le Pen está a escassos pontos de Macron e os generais escrevem cartas em que falam de perigo de guerra civil.

É para estar preocupado. Até porque se dá um fenómeno também muito curioso e preocupante: é que esta subida da dita “extrema-direita” não vem de golpes militares à 28 de Maio ou à Pinochet, ou de violências de rua, preparando “marchas sobre Roma”, ou um Machtergreifung em Berlim. Vem do voto, do voto do povo, em eleições livres e justas. Fica o repto para as vanguardas iluminadas: para quando um Observatório do Povo e do Voto Popular?

O problema é que este é um voto que nem o cientismo histórico-sociológico consegue explicar. Um voto que nem a “relação de forças”, a ferramenta analítica dos bons tempos dos Pais Fundadores do marxismo-leninismo, cujos rostos paternais esvoaçavam nas bandeiras das saudosas confraternizações comunistas, consegue acomodar a um mundo globalizado, onde os donos dos meios de produção parecem alheados de tais preocupações.

O mofo de Dimitrov

Verifico que, no Observatório, ainda vai havendo lugar para experiências arqueológicas a partir do mofo do velho Dimitrov. O pressuposto que ressuscitam é o de ter sido o fascismo (e de ser agora a “extrema-direita”) a última arma de recurso da Burguesia, que, desesperada perante as forças do progresso e da História, recorre à ditadura, às botas de Mussolini e às camisas castanhas do Cabo Austríaco, ou a caudilhos militares sul-americanos ou balcânicos. Infelizmente, em termos de análise marxista – e seguindo a linha mais ortodoxa do mecanicismo soviético, fixada na Vulgata estalinista e dimitroviana –, esta erupção no Ocidente do “fascismo” e da “extrema-direita” pelo voto popular só muito dificilmente poderá explicar-se com base nas relações de classe ou de produção.

Onde estão agora as “forças do progresso e da História em fúria” se não em pleno mainstream? Onde estão se não ao lado do dinheiro com que se fazem os observatórios e no meio da Burguesia?

Acarinhadas e adoptadas pelo poder, promovidas pelos multimilionários da BigTech, omnipresentes nos órgãos de informação do Establishment, a ideologia e a retórica destas novas “forças do progresso” parecem ser bem mais lucrativas e susceptíveis de estar “ao serviço do grande capital” do que o ideário ou os valores identitários e conservadores da pequena classe média e dos reais ou hipotéticos extremistas da direita “fascista”, “neofascista” ou “pós-fascista”. Ao contrário, a “aliança objectiva” que se prefigura é a dos grandes grupos financeiros, dos híper-milionários do Silicon Valey, até dos grandes interesses do capitalismo de direcção central de Pequim e Xangai, com os valores globalistas da extrema-esquerda radical. E se alguma coisa é pública e notória, é o facto de o “grande capital” e “a burguesia dos interesses” se mostrarem especialmente empenhados em afastar a “extrema-direita” e o “neofascismo” que pairam sobre o mundo euroamericano.

O revisionismo marxista de Gramsci

E se a Vulgata não explica o fenómeno, já a versão mais arejada do marxismo-leninismo, a versão revisionista de António Gramsci, registada nos Quaderni del Carcere, poderá entreabrir algumas portas.

Logo perante a revolução de Outubro de 1917, Gramsci observou no Avanti que “a revolução bolchevique era a revolução contra O Capital de Marx”. Queria ele dizer que, segundo Marx e os marxistas clássicos, para fazer a revolução comunista, era preciso esperar pela revolução burguesa, capitalista. Só depois seria possível uma revolução proletária. Lenine estava a sair da linha…

Gramsci leu, como Mussolini, os escritos de marxistas heterodoxos italianos, como António Labriola. E leu também George Sorel, autor da mais fulgurante desconstrução do ideário das Luzes, Les Illusions du Progrès. Leu ainda, como os fascistas Mussolini, Giovani Gentile e Francesco Ercole, Maquiavel e as suas reflexões sobre o poder e o Estado. Com tudo isto, e com a amarga experiência da derrota do comunismo italiano frente ao fascismo, não seria de esperar que o seu espírito, inteligente e inquieto, longe da resignação e do convencionalismo, não reflectisse sobre o acontecido.

E fê-lo no exílio interior e na prisão, numa série de escritos de cerca de três mil páginas, uma peregrinação interior por dentro de Marx e da História da Itália e da Europa, de onde saiu uma revisão de muitos conceitos e uma crítica implícita do mecanicismo economicista e do fixismo progressivamente imposto pela Vulgata soviética. Ironicamente, esta crítica revisionista, escrita numa prisão fascista, não poderia ter sido feita na União Soviética, onde os acusados de revisionismo morriam nas prisões de Estaline, sem que lhes facultassem papel ou licença para escrever.

Até porque Estaline, que não tinha nada de estúpido, nem de intelectualmente boçal, tinha já elaborado, nos anos Vinte, uma “bíblia do rei Jaime” para calar veleidades interpretativas,

Subsídios para uma observação da “extrema-direita”

Gramsci tratou conceitos decisivos para o estudo da Política: os conceitos de hegemonia, de crise orgânica, de momento bonapartista, a autonomia do Estado como espaço do Poder, o papel dos intelectuais e do combate cultural e da sua relação com as determinantes económicas. E o que escreveu pode ajudar alguns elementos mais distraídos ou mais activistas do Observatório – ainda que só para seu entretenimento e ilustração e independentemente das conclusões que julguem por bem tirar a priori.

Tenho, assim, alguma esperança que os observadores do Observatório da Extrema-Direita estejam mais perto de Gramsci do que da Vulgata nas suas análises futuras.

Sem querer ensinar-lhes nada, penso que estamos na Europa e no Ocidente numa clássica “crise orgânica” do sistema, em que “os grupos sociais” se separam dos seus partidos tradicionais, que já não reconhecem como seus representantes.

Será que nos aproximamos daquele momento, também clássico na teoria gramsciana, em que “a continuação da luta não pode concluir-se senão pela destruição recíproca?”

Não sei. De qualquer modo, esta crise parece-me diferente. As forças do sistema, à esquerda e à direita, aproximaram-se demasiadamente umas das outras, criando um centro rotativo, um centrão, entre uma esquerda socialista ou social-democrata, à Blair, e uma direita que, em termos de valores, passou de conservadora a liberal.

Este centrão sofreu com o fim da União Soviética, como inimigo unificador da Euroamérica. E não está a resistir aos custos do globalismo que a desindustrialização da Europa e dos Estados-Unidos e as vagas migratórias resistentes à integração trouxeram. O macroterrorismo do princípio do milénio agitou as águas, mas as águas voltaram à acalmia do costume, pelo menos à superfície.

Desta não resposta do sistema político aos novos problemas, entre a obsessão economicista e liberal das direitas e o abandono da cultura e da ideologia à agenda post-moderna e radical das esquerdas à americana, resultou a orfandade de grandes sectores da população, marginalizados nos seus usos e costumes, nas suas convicções religiosas e patrióticas, no seu estatuto social e na sua renda. Sectores que foram e vão votando nos candidatos que, marginalmente, foram e vão reagindo.

É isto que vem acontecendo na Europa e nos Estados Unidos de há trinta anos para cá. Na Esquerda, depois do fim da URSS, os partidos comunistas foram-se evaporando, substituídos por partidos que abandonaram as “classes trabalhadoras” e foram procurando legitimidade na protecção e projecção de minorias e de causas minoritárias. À direita, os partidos do sistema concentraram-se no liberalismo económico e esqueceram toda a tradição da direita em termos de valores de orientação permanente – religiosos, identitários, familiares, de solidariedade e justiça social.

Assim as direitas, essa amálgama de partidos e de valores a que o anticomunismo e a defesa da liberdade contra as potências comunistas tinha dado alguma coesão, fragmentaram-se e perderam-se ideologicamente. E aderiram ou deixaram de resistir ao discurso globalista do mainstream, moldado pela esquerda radical, deslegitimando-se progressivamente perante o “povo de direita”, que se voltou para as novas forças que ofereciam resistência e alguma antítese ao que estava. É uma situação de crise orgânica gramsciana.

Assim, ao contrário do que pretendem alguns “observadores da extrema-direita”, esta realidade político-social não é explicável por uma acção manipuladora da Burguesia e do Grande Capital neo-liberal, que, vitoriosos desde a Guerra Fria, estariam agora a reinventar o fascismo e a manipular a extrema-direita e os “populistas”.

Tal análise do objecto observado, aqui e na Europa, parece sair mais de uma cartilha clandestina do militante comunista médio dos anos 50, confiscada pela PIDE, de que de um científico e académico Observatório pós-moderno.

Há cem anos, olhando as revoluções contrárias e paralelas – a dos bolcheviques na Rússia e a dos fascistas em Itália – Gramsci sublinhou a ocasional possibilidade de existir uma autonomia do político, do poder, do Estado e da sua conquista que escapava às relações de produção e até ao jogo das classes sociais e seus “interesses objectivos”. Tratava-se então de uma crise orgânica dos regimes e de um momento bonapartista que Lenine e Mussolini souberam aproveitar.

Os observadores da actualidade podiam dar mais atenção ao mestre e menos a teorias da conspiração, por mais científicas e subsidiáveis que se lhes afigurem.