Os jantares da infância e adolescência passaram-se com as mãos na mesa, boca aberta à espera de garfo cheio e olhos pregados na televisão. Religiosamente, às 20:00, como numa grande parte dos lares deste país, se iniciava a nocturna refeição, ao som do genérico do telejornal. Era hora de alimentar o corpo e a alma. Pela pequena janela, entravam-nos por ali adentro as notícias do mundo!

A família de classe média baixa era e é constituída por acérrimos comentadores políticos! Ao verem mais uma reportagem do Parlamento ou uma visita de um ministro a qualquer lado, explodiam entre as bocas cheias “Mais um ladrão!”; “Mas quem é este?”; “Que sabe ele sobre isto?”, “Gatuno!”. O pobre televisor apanhava com aquela gritaria. Mais por sorte que por piedade, sobreviveu incólume a décadas de abusos verbais. Na sua mensagem é que vivia o mal, mas quem sempre paga é o mensageiro.

Nesta família (e como em tantas outras), vivia-se com aquela fleugma, uma bílis negra contra política e os políticos. No entanto, esta família estava e está sedenta de democracia e de verdade, de políticos que os representassem verdadeiramente, mas que, consecutivamente, faltavam à verdade, à palavra e à promessa. Esperavam e esperam ardentemente que a democracia floresça e traga a tão merecida recompensa da liberdade e da prosperidade do povo, prometida pela revolução de 74. Queriam alguém que lhes conhecesse as dores e que delas tratasse. Mas, noite após noite, às 20:00, era sempre a mesma desilusão e sempre a mesma berraria à pobre televisão, que, brava, nunca gaguejou debaixo de tanto azedume. A suma lição retirada destas discussões unidirecionais: o ministro da agricultura havia era de ir aprender a semear batatas!

Nas ruas da aldeia, a qualquer outra hora do dia, os comentários eram os mesmos. De enxada ao ombro, os corpos magros, sujos, suados e queimados do sol também comentavam política. Na sua simplicidade de polvo iletrado, tinham ânsia de liberdade e democracia, que lhe havia sido prometida. Os jornaleiros que se rogavam ao dia e com quem nos cruzávamos aqui e além, todos diziam o mesmo, de bocas de lábios secos e queimados, onde os espaços vazios ocupavam mais espaço que os dentes: o ministro da agricultura havia era de ir aprender a semear batatas!

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Nas épocas de apanha – milho, batata ou tabaco – quando se rogava essa gente ao dia, era comum ouvir os comentários jocosos da miserável e magra plebe: “os do parlamento é que deviam vir para aqui”, “Mas eles lá sabem alguma coisa de trabalho?” e, claro, “o ministro da agricultura havia era de ir aprender a semear batatas!”.

Para uma mente pueril, aquilo eram falas de gente bruta, do campo. Que sabiam eles da vida, assim sujos, de mãos tortas e calejadas, queimados do sol? Eles lá na televisão é que sabiam, todos tão penteados, tão bem vestidos e, com certeza, tão bem cheirosos! Estas bocas, eram apenas manias de um povo que só percebe da terra e de animais (como se isso fosse coisa pouca!).

Para uma mente adolescente, ansiosa de quebrar os laços dum passado e duma família pobre, mas jamais resignada ao destino da miséria, encontrava naquelas palavras o reflexo da aspereza da vida e da ignorância. Eram cavadores de terra. Que poderiam saber eles de política? Que podiam saber eles mais que o horizonte da terra acabada de cavar? Que vida aquela, de limpar o suor da testa que escorria e pingava salgado na terra dura, podia levar a um entendimento de política e de políticos?

Na inocente adolescência, acreditava que os políticos tinham de ser bons políticos, bons advogados, bons académicos, bem-falantes. Pessoas de ferro e aço, pedra e cal, incorruptíveis e com uma sabedoria plena de todas as coisas e todos os problemas do mundo. O político era o produto adicionado de muitas pessoas, o conhecimento adquirido através dum entendimento profundo e sábio da realidade e do mundo.

Mas a vida dá muita volta… Tanta que, depois de tanto rodar, acaba no humilde sítio onde se inicia a viagem. Compreendo agora os pensamentos cristalizados daqueles com mãos calejadas e peles queimadas do sol: o ministro da agricultura havia era de ir aprender a semear batatas!

Agora na cozinha mais silenciosa, pelas vicissitudes da vida e pela morte que a todos leva, reflito que aquela gente, há muito partida, tinha toda a razão: em qualquer área, para se ser um trabalhador eficaz e representar trabalhadores eficazes, é necessário o conhecimento intrínseco do ofício que se representa. Quem confiaria o destino de centenas de passageiros de um avião a um carpinteiro? Chamaríamos um dentista para desenhar uma ponte? Ou convidar um professor de História para costurar um vestido de noiva? Quem confiaria em alguém para reger um país, que só viveu entre políticos, naquele fechado e ensimesmado vulturídeo mundo? Como se pode eleger quem representa um povo pobre e nem o salário mínimo sabe de cor? Como pode esta pessoa conhecer por dentro e aprofundadamente o país que representa?

Estendendo a brasa à minha sardinha, ao meu trabalho e ofício: como se pode decidir sobre os caminhos da sustentabilidade desde um escritório num arranha céus no centro duma capital? O trabalho de campo (e no campo!) faz falta. Só com a experiência se adquire um conhecimento sublime, mas real, inerente àqueles que conhecem os vieses e os reveses dos ofícios. Aqueles que conhecem as dores do mundo real, da realpolitik.

Em breve vamos a eleições e luta o moderado para saber em quem votar. No entanto, a sabedoria é encontrada nos sítios mais inusitados. Por exemplo, sob do ferro frio da enxada, entre cortes da poda da videira, sob o sol quente ou sobre a geada fria. Por esses campos fora, este povo que soçobra, de mãos rústicas e calejadas ainda acredita com todas as suas forças: o ministro da agricultura havia era de ir aprender a semear batatas!