Desde o século XVI, aquele mundo antigo dos mitos, das lendas e das fábulas, tido como irracional, foi progressivamente descartado como falso, se não mesmo pernicioso. Afinal, a mente sã, racional, pura, não se deixa levar pelas sombras dos monstros, medos e vãs ansiedades que configuram esse velho mundo. Libertando-se dessas ilusões, imaginou-se, o Homem tornou-se mais racional, independente, capaz de reconhecer melhor o mundo que o rodeia e que pretende dominar. Daí que Bacon, no seu Organon, tenha anunciado e apregoado o mundo novo do Iluminismo como representando o homem maduro, completo, adulto, finalmente liberto dos erros e das limitações próprias das crianças toldadas pela ignorância, excitação e muita superstição.
Hoje vivemos esse legado. Livre de mitos e religiões, o Homem contemporâneo não se verga perante Deus, não ajoelha diante do Padre e não reflecte à lareira, defronte do fogo, sobre as histórias dos antepassados que o fizeram, a ele e ao mundo que herdou. Não, o Homem contemporâneo presta apenas vassalagem a si próprio — que é como quem diz àquele outro homem ou mulher particular que lhe paga o salário. Ao mesmo tempo, onde antes o fogo incendiava a mente com ideias e imaginação, sonhos e divagação, lendas e histórias, cabem agora, a martelo, injectadas directamente pela redacção jornalística, as notícias do dia — todas as relevantes, asseguram-nos —, junto com os números trimestrais da contabilidade estatal e, claro está, as últimas trocas de palavras mais acesas entre os lados esquerdo e direito da câmara parlamentar. Substituíram-se, assim, as lendas e narrativas contadas em comunidade por uma eterna e repetitiva “novela do real” rotulada de Telejornal — na qual, alegremente, políticos, comentadores e jornaleiros convivem sem grandes questões — trocando-se o antigo aconchego do fogo pela radiação nocturna, hipnotizante, alienadora, da luz azul, eléctrica, mas fria, da TV.
Neste mundo hiper-realista, pseudo-factual, o irreal confinou-se, pois, à “arte” — a novela, o teatro, o cinema — , cada vez mais rasteira e animal, digital e fantástica, talvez para compensar a vida materialista, cientificamente comprovada, aborrecida, asséptica, do dia-a-dia. Assim, curiosamente, quanto mais o Homem novo procura afirmar-se como adulto e maduro, mais parecem os indivíduos particulares ficar agarrados às narrativas infantis de super-heróis que inundam os video-jogos e os filmes de animação que, mesmo depois dos 40 anos, ainda fazem parte integrante do dia-a-dia do Homem contemporâneo. X-Man, heróis da Marvel, personagens Star Wars e Star Treck e demais criaturas fantásticas substituem agora, mesmo que cada vez mais andróginas, depiladas e pouco físicas, os heróis infinitamente mais musculados e pejados de testosterona das décadas finais do Século XX.
Assim, paradoxalmente, o Homem novo, o tal que se imagina adulto e independente face ao mito e à fantasia do passado, é precisamente aquele que mais inundado de fantasia está. Desde logo, e como sempre, o mito do herói que no The Hero With a Thousand Faces, Joseph Campbell, um herdeiro de Jung, desmontou numa simples narrativa: a do indivíduo que, chamado à aventura, sai do conforto da sua comunidade para um sítio fantástico ou exótico, sempre distante, no qual trava batalhas épicas contra diversos adversários temíveis, entre os quais figurativa ou literalmente um dragão que guarda um tesouro, saindo o herói vitorioso desse embate, conquistando o tesouro que traz consigo de regresso ao mundo de onde havia partido. Esse herói, que congrega de forma abstracta, num arquétipo narrativo, os passos da maturação psicológica de cada indivíduo predicados por Jung, curiosamente, está por toda a parte, muito mais perto do que os homens e mulheres do século XXI sequer imaginam.
Desde logo, no cinema. Neo, por exemplo, em The Matrix, tal como Alice no País das Maravilhas, segue o coelho rumo ao mundo fantástico que a Inteligência Artificial construiu para aprisionar os seres humanos. Aí, lutando contra poderosos Agentes, dentro do Matrix, e robots monstruosos fora dele, Neo, depois de tomado o comprimido encarnado e transformado numa espécie de Cristo de estilo gótico, acaba a derrotar as máquinas para salvar o último reduto de Humanidade, Zion. Robin Hood não salvou a Humanidade, é certo, mas também representa na perfeição o protótipo do herói: sai imberbe, pouco responsável, infantil, portanto, para ir combater os Mouros nas longínquas Cruzadas. Regressa depois, com toda a experiência adquirida na batalha — o tesouro que roubou ao dragão —, para liderar um pequeno grupo de homens a rebelar-se contra os desmandos do Príncipe João e o seu ajudante temível, o xerife de Nottingham.
Outro protótipo perfeito do herói aventureiro é Indiana Jones. Sai sempre da serenidade tranquila da universidade para, de chicote e chapéu, viajar para os locais mais recônditos, fantásticos, e travar batalhas incríveis com o Mal puro — ali personificado em Nazis, cobras (o dragão, lá está) e armadilhas antigas — para todos derrotar e regressar à universidade com os despojos da batalha, no caso, a Arca da Aliança ou a descoberta do Santo Graal. Também James Bond sai para o estrangeiro, sempre longe, para combater o eterno dragão que é a SPECTRE e regressar a Londres depois de salvar a Humanidade. E quem diz estes dois aventureiros diz a maior parte daqueles que compõem ainda hoje o imaginário do herói cinematográfico.
A narrativa, claro está, varia, mas o arquétipo mantém-se também nas histórias mais dirigidas às crianças: desde Bela, em A Bela e o Monstro, que viaja até ao recôndito castelo onde doma o monstro para conquistar o príncipe encantado que não existia na sua aldeia, passando pelo príncipe de A Bela Adormecida que chega a enfrentar um dragão pelo caminho, ou os Estrumfes, essa alegoria comunista onde um Karl Marx azul de barrete encarnado e barba branca lidera uma comunidade que tudo partilha, incluindo as moedas de ouro que conseguem proteger do gigante — o “grande capital” que lhes quer roubar o ouro —, com quem lutam longe da segurança de casa, para, bem-sucedidos, sempre regressarem à paz perpétua da aldeia.
Há ainda formas mais subtis como, por exemplo, Rambo, o veterano perdido de A Fúria do Herói, um homem que regressa do Vietnam para o interior dos EUA, não com despojos de guerra, mas com uma lição moral para partilhar — a de que não se deveria desprezar toda uma geração de ex-combatentes magoados e marcados pela guerra para a qual tinham sido enviados. O herói pode até não ser humano, como em Lassie Come Home, onde uma cadela forçada a ser vendida para uma terra distante foge para enfrentar o árduo caminho de regresso a casa, ou nada sequer ter de herói, como Charlot em The City Lights, onde a aventura são o conjunto de expedientes através dos quais um pequeno mendigo consegue juntar, enfrentando as mais diversas peripécias, a quantia suficiente para, através de uma operação, devolver a visão — que maior dom para o herói trazer consigo poderia haver do que esse? — à sua amada, aquela, precisamente, que o chama para a aventura.
Em suma, seja Hans Solo, que, contrariado, vai ajudar a destruir o Império, seja o Super-Homem, que tem que ir aprender com o holograma do pai para o frio do Pólo Norte antes de poder regressar munido desse conhecimento para derrotar o Mal da cidade, seja qual herói for, o chamamento para aventura, a partida para longe, a derrota do dragão e a consequente conquista dos despojos da batalha — o tesouro e o dragão representam a recompensa e o esforço da tarefa, respectivamente — é, também, o mito de São Jorge, isto ao mesmo tempo que, mais em abstracto, representa a grande narrativa do herói que anima a maior parte das histórias que pululam no imaginário do Homem contemporâneo.
No entanto, o Herói com Mil Rostos, como Campbell lhe chamou, não trata apenas do imaginário infantil, ou de heróis e super-heróis presentes no legado cinematográfico contemporâneo. O mesmo herói aparece ao longo de toda a narrativa mitológica clássica e, não surpreendentemente, também na teológica. No caso da nossa tradição judaico-cristã, desde logo com Moisés que, chamado à aventura, lidera o povo hebreu para o deserto, a aridez e a miséria, para, perante a desordem, acabar por aceder a novo chamamento para subir ao Monte Sinai onde, finalmente, depois de todas as agruras, perante o Altíssimo, recebe a Lei que trará a ordem à comunidade e abre o caminho para a Terra Prometida — que maior dádiva haverá do que essa? Mais tarde, também Jesus encarnou esse mesmo herói quando abandonou a sociedade para ir 40 dias para o deserto onde combate, não um dragão, mas o maior Dragão de todos os Dragões — o Demónio — que O tenta, mas sem sucesso, saindo dessa contenda Jesus vitorioso de regresso ao mundo para levar a cabo a sua missão de redimir a Humanidade.
Ainda assim, talvez aquilo que mais possa surpreender o Homem contemporâneo, empedernido pseudo-cientista, herdeiro máximo da libertação anti-supersticiosa e mitológica, será o facto de o mito do herói também configurar a principal narrativa filosófica da própria apologia da razão científica. Que outro além do Herói com Mil Rostos será o filósofo que se liberta da caverna de Platão para, a custo, no “limite do cognoscível”, ir descobrir o mundo fantástico das formas e do verdadeiro conhecimento para, depois, munido desse conhecimento conquistado, desse imenso tesouro, regressar às sombras da caverna para tentar libertar os seus companheiros de prisão?
Ou, que outro será, além do Herói com Mil Rostos, aquele homem idealizado por Kant que, a custo, suprimindo as suas próprias inclinações, consegue aceder (através do imperativo categórico) ao mundo inteligível da razão pura para descobrir a “solução” racional, logo verdadeira e definitiva, universalmente válida, para os dilemas morais do mundo que, um dia, revelados progressivamente ao mundo natural, estabeleceriam as bases da paz perpétua?
Ou, ainda, que outro será. além do Herói com Mil Rostos, aquele homem idealizado na posição original de John Rawls onde, perante um “véu de ignorância”, livre de conhecer qualquer aspecto particular sobre si próprio, acede então ao seu Eu racional para, junto com todos os outros Eus racionais da comunidade, descobrir a forma racional, portanto universal, objectiva e definitiva, de organizar uma sociedade de acordo com o princípio fundamental da justiça, descoberto, ou revelado, ali naquela terra de ninguém, e dali anunciado ao mundo por Rawls?
Em boa verdade, não há maior encarnação mitológica do que o mito do herói racional: a ideia de que podemos escapar da nossa condição subjectiva humana, alcançar o patamar da razão pura universal, e regressar de lá com o conhecimento absoluto, factual, científico de que qualquer coisa, seja ela moral ou não, é verdadeira será, provavelmente, o maior mito que se espraia de forma omnipresente pelo Zeitgeist contemporâneo.
Tal é a força desse mito na estruturação mental da nossa própria sociedade, a tal que se imagina liberta de mitos, que pervertemos a própria essência do conhecimento científico: onde antes prevalecia o método científico, a descoberta de respostas parcelares que forçam a mais hipóteses e a novas perguntas, num processo de eterna dúvida, apenas certos de não podermos ter a certeza de nada — tal como Popper, num belíssimo paralelo com o “apenas sei que nada sei”, explicou e demonstrou no seu princípio da refutabilidade —, passou agora a triunfar a ideia completamente absurda, baseada em nada mais além de mitos e fantasias, de que, por consenso, “a ciência” — que é como quem diz “os especialistas”, na maior parte dos casos bem financiados pelos “poderes que são”— pode determinar aquilo que é verdade, incluindo nesse poder o direito a censurar opiniões divergentes, desqualificando críticos como “chalupas” e “negacionistas”, como se a verdadeira ciência fosse outra coisa além de um eterno debate.
O método científico trouxe-nos a dúvida eterna, e daí o risco da constante incerteza; mas desse risco, chamados para uma aventura extraordinária, exorcizámos fantasmas, matámos monstros imaginados e descobrimos o cosmos e o micro-cosmos. De pleno direito, conquistámos os tesouros que esses dragões escondiam e, como Prometeu, o Homem moderno ofereceu ao mundo a tecnologia que o revolucionou. Infelizmente, os filhos pródigos parecem ter hoje em dia esquecido as razões desse sucesso. Encandeados pelos frutos do progresso que lhes aparecem agora como feitos mágicos que não compreendem, hipnotizados, adoram o falso deus da “ciência” de onde, na ilusão da obtenção de certezas, imaginam um paraíso futuro de desresponsabilização: afinal, sonham eles, os especialistas e os cientistas, a seu tempo, descobrirão todas as verdades e, “cientificamente”, nos libertarão do fardo da escolha decidindo por nós.
Foi, curiosamente, a sociedade que se imaginou liberta do mito que se deixou submergir por ele — porque esqueceu que o mito apenas reflecte a verdade intemporal que o mundo esconde de nós, mas que os antigos, pelos ecos imemoriais do tempo, ainda nos vêm fazer lembrar. O Homem novo imagina-se herói de um tempo onde é rei e senhor, mas esquece-se que o verdadeiro herói, como sempre, é aquele que abraça o risco, a incerteza, a dúvida e enfrenta o dragão do desconhecido para daí trazer algo de novo ao mundo.
Paradoxalmente, o Homem infantil do século XXI parece mais interessado em viver fantasias de super-heróis, abdicando da sua missão histórica para, a cada geração, salvar o mundo do eterno Dragão que se esconde sempre à espreita, no escuro, ao virar de cada esquina — o caos que reina fora das paredes protectoras da civilização.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.